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sexta-feira, 9 de março de 2012

NATAL

Em Teresina, como em quase todas as cidades brasileiras, o Natal constituía a mais linda festa do ano, significativa por excelência, sobretudo na comunhão espiritual da comunidade. Alegria nos corações. A graça e a beleza artística dos presépios nos templos religiosos - e o Menino Jesus vestidinho em camisa muito alva de seda ou de cambraia. À meia-noite, a missa do galo, igreja repleta de gente de variada categoria social. Os sinos repicavam mensagens de amor para que todos se fizessem mais irmãos. Depois do oficio divino, no lar de rico aconchego afetivo, a família se entrega, unida em carinho, à ceia natalina, composta do peru morto na véspera e assado nos velhos fornos de barro, com o brasileiro bem vivo e ardente. A farofa da ave era uma gostosura. Comiam-se outras iguarias saborosas, preparadas por cozinheiros de doutos conhecimentos nesses assuntos culinários. Não se desprezavam o bom vinho, nem a doçaria de dar água na boca.

Os tempos correram na sua marcha inexorável. A produção industrial aumentou de modo incontrolável. Houve necessidade de vender e vender sempre mais. Inventou-se o rádio. Criou-se a televisão. A propaganda intensa dentro dos lares transformou o Natal num período de angústia generalizada, aperreante, aflitivo, de ânsias para os assalariados na consecução do dinheiro destinado à compra do presente. Esqueceram-se as lições de humildade do Menino da manjedoura de Belém. Cristo passou a objeto das ambições da indústria e do comércio. Avilta-se a beleza do episódio do nascimento. O silêncio da gruta se desrespeita com a barulheira infernal dos anunciantes e dos camelôs de enjoativa palração.

Renato Castelo Branco, criador de momentos inesquecíveis de arte verdadeira, concebeu e escreveu esta jóia inimitável - uma lição de sabedoria e de verdade, intitulada A BOA NOVA:

Quando a Estrela de Belém
anunciou a Boa Nova
os Reis Magos vieram do Oriente
carregados de ouro
incenso e mirra
prostar-se ante o Menino Jesus.

Mas depois deles vieram
Herodes e Caifás
Judas e Pilatos
- a crueldade e a intolerância,
a traição e o calvário.

A verdade está em que os homens criaram uma sociedade injusta e perversa, dividida em esbanjadores e famintos. Repudiam-se as lições do Menino-Deus. Há os que afrontam os maltrapilhos, os que matam para o sustento de ambições malditas, os que extinguem vidas para que os lucros se tornem partes em nome de irresponsabilidade. Neste mês de dezembro, houve no Recife um casamento em que se dissiparam milhões de cruzados em futilidades, em enfeitações, em trajes com rabo de dez metros de comprimento, em comes e bebes sobejantes, enquanto na capital pernambucana meninos esquálidos e famintos se alimentam de restos de comida das latas de lixo. Horas antes do ministério da gruta de Belém, a covardia, de tocaia, matou um líder que defendia os injustiçados e lutava pela preservação da natureza dadivosa. O dia 24 de dezembro representou a fartura na mesa dos ricos sem coração e a miséria do menino pobre, que nunca viu um brinquedo de Papai Noel. E muitos, coitados, pagaram com a vida o passeio de barco, de altas quantias, para as delícias de um trinta e um de dezembro no Rio, cidade de dramas de miséria e do crime dos miseráveis. Pobres vítimas da ganância e da irresponsabilidade.

O canto maravilhoso de Júlio Romão da Silva é emocionante, quando põe, numa peça teatral, as verdades na boca do Mestre:

Existiam dores no mundo, sonhei um mundo sem dores, havia feridas no mundo, sonhei um mundo sem chagas, havia um mundo faminto, sonhei um mundo sem fome, havia lágrimas no mundo, sonhei um mundo sem lágrimas, havia um mundo recluso, sonhei um mundo sem grades, havia um mundo servil, sonhei um mundo liberto, havia um mundo odiento, sonhei um mundo sem ódios, havia um mundo com muro, sonhei o mundo sem muro, havia um mundo sem paz, sonhei a paz para o mundo - E MATARAM-ME. Ó sátrapas, ó víboras, ó abutres, ó vampiros, ó répteis, ó sacripantas, ó chacais! Quando deixareis o charco e a carniça? Quando ouvireis a melodia do meu canto e vereis a beleza do meu sonho? Quando parareis de me matar para entenderdes a mensagem do meu Salmo?


A. Tito Filho, 08/01/1992, Jornal O Dia

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