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quarta-feira, 28 de março de 2012

COMADRE PULU

Este ano de 88 passei a Semana Santa em casa, na leitura leve de revistas e de boas piadas do barão de Itararé, que eu conheci no Rio de Janeiro, famoso e querido. Também vi na televisão e meditei.

Na quarta-feira, boca da noite, minha comadre Pulu, batizada Pulquéria, ainda apetecível, pesar dos seis molecotes que já botou no mundo, me apareceu para requerer de meus magros bolsos o respectivo jejum. Dei-lhe um pedaço de bacalhau do lado do rabo, sardinha, macarrão, feijão, doce, uns trocados para os temperos e o transporte nos luxuosos ônibus da cidade. Perguntei pelo Bitonho, marido dela. O caboclo obteve licença na penitenciária para repouso religioso em casa.

Minha boa comadre nunca pôde passar a Semana Santa na praia, comendo peixe e bebendo uísque, os casais alegres, mas sem a lembrança de Deus, comem e bebem que adoecem, buscam os especialistas para cura dos andaços, que eles chamam disenteria.

O mundo está assim mesmo - disse eu à mãe do meu afilhado Toinho, já um pouco taludo, o mais velho dos dois filhos, que sonha com um emprego público, sem concurso e sem trabalho - o mundo está dividido entre os que deglutem bacalhoadas no repuxo do uísque e os que comem piabinhas fritas do rio Parnaíba, empurradas com boa cana.

Os programas de televisão estavam normais ainda na sexta-feira, morte de Cristo, que veio ao mundo para salvar as mulheres e os homens. Deus na Bíblia teve a desobediência da esperta Eva comendo a maça de que ela provou e gostou e deu-a, safada, a Adão. Aí Deus mandou Jesus habitar na terra - e Judas praticou a canalhice. Mulher e homem são, como se vê, farinha do mesmo saco, aquela engana Deus, este traiu Jesus.

Meditei em tudo. Na quaresma dos bons tempos, os sermões nas igrejas, o pano rôxo cobrindo santo e santas. As procissões silenciosas, as donas ricas vestidas de seda preta, as pobres com os mulambos tingidos de luto. Os anjinhos de asas as vestidoras de anjos, solteironas narigudas. Velhotas tabaquentes, cheirando a rapé. Havia o pessoal das irmandades religiosas, metidos na opa. Lembro-me do Zé Pindoba acompanhando o andor, cabeça baixa, como que arrependido das safadezas praticadas na sua quitanda de secos e molhados. A matraca de vez em quando convocava atenções, com as batidas fortes e espantadoras. Bons tempos.

Recordei estas cousas antigas, bonitas, e minha comadre Pulu me ajudou nas lembranças. Em casa, caminhava-se devagar, falava-se baixo ninguém ria. Não se deixava varrer casa em que pessoa alguma tomasse banho. Raros jejuavam de verdade. Comia-se muito, peixe, bacalhau, maxixe, jerimum, canjica e as inesquecíveis frigideiras. As beatas, sim, quase nada engoliam. Minha tia Iaiá, que Deus a tenha no seu reino, passava a sexta-feira santa de preto, ajoelhada horas seguidas, rezando terços, sem nada na barriga.

Comadre Pulu despediu-se, deu-me quebra-costelas demorado, pediu que a visitasse no casebre. Comunicou-me a notícia do almoção que ia preparar na quinta e na sexta-feira. Estava enjoada de jejuar o ano todo. Só escapava da fome nos dias maiores da Semana Santa, pelas boas graças do comadre caridoso. Ainda pretendia comprar, com os cobres que lhe dei, uma cachacinha para ajudar no apetite.

Gosto de minha comadre Pulu. conformado. Temente a Deus. Cozinha bem, embora, em casa, pouco acenda fogo, salvo o próprio. Vive de lavações e gomações de roupa de gente rica - aquela gente das mansões e das festanças à custa dos papagaios bancários e da inflação desnaturada e perversa.


A. Tito Filho, 16/04/1992, Jornal O Dia

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