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sábado, 17 de março de 2012

IMPRESSÃO

Em 1959, busquei recursos médicos no Rio de Janeiro. Sai de Teresina cedinho, nos aviões DC-3, que realizavam um chatíssimo pinga-pinga: Bom Jesus da Lapa, Salvador, Ilhéus, Montes Claros, Belo Horizonte, Vitória, finalmente a velha capital brasileira, aonde se chegava pelas oito horas da noite. Gerardo Vasconcelos, bondoso dia por dia, me deu carta de recomendação a um doutor dirigente de casa de saúde e às portas destas bati e tive recado de falta de vaga. Mandaram-me para outro hospital, até que alguém, morto ou restabelecido, desocupasse quarto.

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Estabeleci-me, de modo provisório, noutra casa de saúde, e nela recebi assistência de um doutor magro, fino, mas sabido como diabo. Depois que me auscultou, e de natural e até demorado interrogatório, consentiu em que eu tinha muita fome. E já noite puxada me conseguiu ovos, presunto e pão.

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De manhã, solzão, aberto, recebi a visita do diretor do hospital, de faces e queixo barbudos, bem cheios de barba - uma barba negra, muito negra e bem cuidada. Era o piauiense de nomeada, de fama justa, Correntino Nogueira Paranaguá. Conversou comigo um bom pedaço de tempo, lhano, afável, deixando-me forte impressão de homem honesto, simples e correto.

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Durante anos não tive oportunidade de rever Correntino. Mas não saiu da memória o seu gesto bondoso da visita, e de encorajar-me com a esperança de breve reencontro com a saúde.

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Em 1976, publiquei livro a respeito das ruas, avenidas e praças de Teresina, biografando vultos ilustres homenageados, ou oferecendo a significação dos nomes de outras vias públicas. Ano seguinte, Correntino mandava-me carta, em que salientava natural decepção ao sentir que a capital piauiense não possuía um beco sequer chamado Joaquim Nogueira Paranaguá, pai do missivista, que reais e relevantes serviços concedeu à coletividade nacional. A voz do filho reclamava a honraria, que os poderes competentes haviam esquecido. Levei o caso ao Prefeito Wall Ferraz, e a justiça foi feita.

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1978. A Academia Piauiense de Letras, em janeiro, promoveu festas comemorativas dos seus sessenta anos de existência laboriosa e útil e convidou piauienses radicados noutras terras para a comunhão das alegrias acadêmicas. Um deles: Correntino Paranaguá - prestimoso, atento aos deveres do coleguismo, educado, culto, presente em todas as solenidades acadêmicas.

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Tive a boa sorte, a sorte de habitar a sua amizade sincera e leal. Mantivemos correspondência. E dele merecia atitude que muito me confortou o espírito: a leitura destas páginas, escritas com o sentimento da verdade histórica e social, e sobremodo com o objetivo de rememorar a figura paterna, íntegra, humana, sensível ao sofrimento alheio, devotada ao bem público, temente a Deus, estudioso, capaz de sacrifícios, incansável trabalhador pela sua terra e pela sua gente.

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Joaquim Nogueira Paranaguá diplomou-se médico, fidelíssimo ao juramento da formatura. Utilizou-se da política partidária para a prática do civismo. Como administrador, de pequenos recursos materiais e tempo escasso, soube cumprir o dever. Teve luta admirável em favor da educação do homem - do homem que ele pretendia consciente e integral de virtudes. Escritor e cientista, pôs a serviço do povo os dons de privilegiada inteligência. Nunca esmoreceu para não desmerecer, como queria e ensinava Oswaldo Cruz. Nele se harmonizavam a força de vontade no espírito, o bom senso nas determinações, a honestidade nos princípios, a energia nos atos, a confiança em si mesmo, a fé em Deus. Filho, esposo e pai amantíssimo.

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Este trabalho de Correntino Paranaguá vale lições de história do sul do Piauí e das lutas da sua gente heróica. A narrativa acolhe desavenças partidárias, cangaço, cheiro de pólvora, também trabalho de liderança, esforço educacional, esperanças de novos tempos - e tudo aqui está fiel: a paisagem, os quadros da adolescência, a cidade pequena, os rios, os tipos humanos e seus caracteres, os episódios políticos, a face negativa de certos homens, os dramas da vida, a dor e a alegria, a coragem de ser forte, as árvores, os bichos, as lendas, o sol e a chuva, a doença, a crendice, a superstição - como se tudo fosse fotografado por um observador perspicaz, bem servido de vastos conhecimentos, dos estudos sociais e psicológicos, do modo sério de narrar a história e nela situar personagens e fatos memoráveis que a explicam e justificam.

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No autor, antes de mais nada o intérprete do passado remoto e do passado recente do Piauí. As figuras parecem vivas, tal o engenho com que são projetadas. E ressalte-se, como virtude de poucos, de raros até, a linguagem singela, bem conduzida, conveniente ao estilo do narrador de boa cepa.

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Em todo cenário do livro, no Piauí e noutras paisagens brasileiras, a gente sente a presença de Joaquim Nogueira Paranaguá, a beleza de suas lutas, os processo educacionais que o sensibilizaram, o seu feitio de querer bem ao semelhante, o seu apostolado - afinal o Homem, que soube servir, com amor verdadeiro, a família e a coletividade, obediente aos ditames de Deus.


A. Tito Filho, 25/05/1992, Jornal O Dia

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