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segunda-feira, 2 de abril de 2012

O DIA - mais de quatro décadas

Os jornais do século passado abrigavam o noticiário e o registro de casamentos, óbitos e mercadorias de comércio. Na República, com a política passional de ódios e malquerenças intensificadas, o principal prato jornalístico era servido no processo de xingação. Ao lado dos artigalhões desrespeitosos, publicavam-se produções de poetas e prosadores. No começo do século, polêmicas animadas de erudição constituíram a principal matéria de uma pequena elite de intelectuais. De modo geral as batalhas jornalísticas se travavam entre católicos, numa trincheira, e na outra os livre-pensadores, materialistas, vindos do Recife influenciados pelas idéias de Tobias Barreto e Sílvio Romero. A imprensa cada vez mais melhorava de aspectos gráfico, mas a violência da linguagem política persistia. As primeiras reportagens, em várias edições, se publicaram sobre as mortes do professor Jarrinha, do motorista Gregório e do juiz Lucrécio Dantas Avelino, assassinados, crimes que se projetaram fora do Estado.

Na década de 30, Cláudio Pacheco, com o primeiro jornal de linguagem criteriosa, inaugurava a imprensa sem verrinas, mais voltada para a notícia e a informação. Processos novos, portanto, e que contavam com a cooperação do jovem e talentoso estudante Abdias Silva, que viria a tornar-se figura exponencial do jornalismo brasileiro. Em 1937, Getúlio Vargas golpeia a constituição do país e assume o governo ditatorial, com poderes tão violentos que lhe permitiam anular decisões do Supremo Tribunal. Com a queda do ditador, em 1945, arregimentaram-se as forças políticas em dois grandes partidos, o Social Democrático, getulista, e a União Democrática Nacional, adversária - e as duas agremiações em Teresina vieram a tona dos jornais. Voltou-se aos velhos tempos, em que as xingações prevaleciam sobre qualquer assunto, e elas perdurariam até o governo rocha furtado, período em que ao menos a vida privada se respeitava; nem a honra, ao menos o mérito.

A 31 de janeiro de 1951, na sucessão de Rocha Furtado, assumiu o governo um homem simples, Pedro de Almendra Freitas, que, ainda na campanha, assegurou a sua intenção de tranqüilizar a vida partidária piauiense. Esquivou-se de perseguições e violências contra adversários. Assegurou um clima de desarmamento dos espíritos e de garantias de ampla divulgação de idéias de todos. Desta forma possibilitou que se pudesse exercer livremente o jornalismo. Pedro, homem arguto e respeitável membro da sociedade, mereceu a confiança dos concidadãos. Houve paz e a política se exerceu sem temores, sem ódios e malquerenças.

No dia seguinte da posse de Pedro Freitas, surgiu O DIA, fundado por Raimundo Leão Monteiro, conhecido por Mundico Santídio e apelidado por todos como "Mão de Paca". Era primeiro de fevereiro de 1951. O órgão circulou durante muito tempo, quintas e domingos, com a assistência do tarimbado jornalista Orisvaldo Bugyja Britto, moço ainda e bem conhecedor da arte de redigir. Foi curta a sua função de redator.

Raimundo Leão Monteiro era homem de poucas letras, mas tinha inteligência e objetivo de ganhar dinheiro. Palrador nas bancas de café e mesas de cerveja, por vezes dado ao deboche, cercava-se de alguns cidadãos que muito apreciavam as pilhérias do proprietário de O DIA. Homens de prestígio intelectual e social, que não queriam os nomes respeitosos envolvidos em críticas e comentários contra o governo ou pessoas por eles antipatizados, buscavam em Mundico o amparo necessário para publicar-lhes os artigos, que Mundico publicava sob pseudônimo, escondendo a autoria. E O DIA circulava com as páginas repletas dos mais variados assuntos em artigos assinados por Petrus, Edgaroff, Malthus, Lutecius e outras denominações. Na mesma página o jornal estampava evidentes contradições entre os colaboradores. Nessa fase o órgão nunca se preocupou com os sofrimentos coletivos nem com o noticiário de interesse social. Raramente se via trabalho jornalístico com a responsabilidade própria.

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Passei algum tempo afastado das lutas de jornal. Parece-me que em 1966, ou pouco antes, pertencia a Octávio Miranda o órgão e estava com a orientação desse talentoso e sério Deoclécio Dantas, que me convocou para os editoriais de O DIA, inseridos na primeira página. Escrevia-os diariamente sobre assunto oportuno e atual. Comentários seguros, de linguagem cuidada, crítica e censura, a fatos administrativos e ofensas à sociedade pelo cinema ou pela irresponsabilidade de alguns. Deoclécio redigia noticias e informações, conferindo-as em busca da verdade. O DIA adquiriu grande credibilidade. O que se procurava corrigir, merecia pronto atendimento das autoridades ou responsáveis por instituições privadas. Deixei o jornal para atendimento de minhas obrigações de professor, que se distribuíam por manhãs e tardes inteiras e o pedaço da noite, entre as 19 e as 22 horas. Hoje sou seu humilde colaborador.

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O DIA perfaz, neste primeiro de fevereiro, 41 anos de vida. Quando o adquiriu e o montou para nova fase, Octávio Miranda pensou igualmente em dotar Teresina de um jornalismo moderno, em que se encontrassem a notícia, a informação, o comentário desapaixonado, como se fora um órgão de educação e princípios. Neste ponto o seu alto merecimento. Entendeu a lição de Cláudio Pacheco trinta anos atrás - o jornal não se faz com interesses pessoais, mas com a força orientadora da opinião pública. E pautou O DIA por tais caminhos, liquidando a imprensa baseada em injúrias, calúnias e difamações.

Nos 41 anos de vida completados, Octávio Miranda fez jus à gratidão dos piauienses, por haver dotado Teresina de um organismo que serviria de escola e lição permanente a outros jornais que se instituíram.


A. Tito Filho, 01/02/1992, Jornal O Dia

ARTE

As comunidades humanas de vez em quando padecem provocações, que resultam de cousas diversas - crimes, intempéries da natureza, epidemias, atitudes passionais dos grandes ajuntamentos humanos, imprevidência das pessoas ou dos governos e outros. Teresina tem sofrido também, no curso de sua história, dias aflitivos e penosos.

Em 1875 houve o pânico, tempo em que a varíola matava por todos os recantos da cidade, que ocupava apenas a parte plana da margem do rio Parnaíba. Frei Serafim de Catânia tornou-se o piedoso confortador dos padecentes: "Jamais recuou da porta do pestoso, simples trapo de carnes podres, caindo aos pedaços, sem feições reconhecíveis, momento terrível de miséria humana. Esse quadro, muitas vezes renovado, não o abateu durante longas jornadas a qualquer hora do dia ou da noite. Ao ouvido dos desgraçados, sem desfalecimentos nem tardanças, trazia a paz da consolação suprema" - assim escreveu o ilustre Elias Martins. Dois anos depois da varíola, a seca de 77. Centenas de retirantes chegavam ao Piauí, vindos do Ceará. E para o Piauí não tardou a penúria, fome, a morte. Teresina abrigou multidão de exaustos e doentes.

As cheias formidáveis dos dois rios que banham a cidade, de tempos em tempos inundam habitações, sobretudo as choupanas da pobreza sofredora - e desabrigadas sem conta permanecem até que as águas baixem e seja possível reaver as chocas miseráveis ou o levantamento de novas.

O cerco da Coluna Prestes, entre 1925 e 1926, vinda pelo sul do Estado, fez que grande parte da população, espavorida, abandonasse a cidade e tomasse os caminhos do norte, por medo da fuzilaria ensurdecedora e perigosa.

Os acontecimentos iniciais em 1943 correspondem, porém, a cenas dantescas e tragédias gregas, tantas as violências contra pobres pessoas se provocaram, promovidas por agentes policiais. Era o governo do médico Leônidas Melo, que, interventor federal no Piauí, em virtude de certos atos contra direitos alheios, conquistou sérias inimizades políticas. Vigorava a ditadura e os jornais sofriam censura prévia. A chefia de Polícia estava sob as ordens do coronel Evilásio Gonçalves Vilanova. Foi o tempo dos terríveis incêndios de casebres de palha de Teresina. Comunicavam-se por bilhetes o dia e a hora em que as labaredas subiam aos céus na queima da casa escolhida - e os moradores a abandonavam, e no exato momento do aviso as línguas de fogo consumiam tudo, teto e paredes, e os trastes da vida diária.

Desespero e choro. Nada se salvava, tudo se transformava em cinza, os cacos da cozinha e os farrapos de pano da dormida e do coro.

Os elementos de oposição culpavam as autoridades, desejosas de acabar com as choupanas de palha da capital, feias e miseráveis, ou o governo atribuía o crime aos adversários para puni-los severamente na qualidade de incendiários. Pensava-se também na existência de indivíduos, piromaníacos para a satisfação da mórbida personalidade. Chegou-se a acusar da hediondez o próprio chefe de Polícia, por intermédio de policiais de confiança com a intenção ambiciosa de derribar o interventor federal e assumir o comando da administração. As rodas oficiais consideravam mandantes das queimações o médico José Cândido Ferraz, que despontava como o mais afoito elemento contra o governo ditatorial na política piauiense.

Alta noite homens humildes, presos pela polícia e acusados de autoria, nas clareiras da mata de Teresina rumo de Morrinhos, eram submetidos a torturas intensas e impiedosas. Contam que alguns morreram.

Do Rio de Janeiro veio delegado especial para as investigações - e apesar de trabalho exaustivo e bem orientado e das suspeitas levantadas, não se chegou a nenhuma conclusão definitiva.

Vitor Gonçalves Neto fixou tenebrosos aspectos dos incêndios que afligiram a pacata comunidade teresinense desses dias de luta e de lágrimas. O talento de escritores, como ele, sabe explorar essas tragédias e revelar-lhe os cenários e as vítimas da forma que as reproduzissem em toda a eloqüência da sua crueza. Vítor utilizou-se da verdadeira arte popular, e à sociedade de hoje, já distante dos trágicos dias passados, transmitiu a força dum sentimento coletivo para os deveres das grandes solidariedades nas dores que o homem tem padecido em todos os tempos da humanidade.


A. Tito Filho, 18/01/1992, Jornal O Dia

IDÉIAS

Faleceu, faz anos, Elias de Oliveira e Silva, membro da Academia Piauiense de Letras, primeiro ocupante da cadeira 28, patrocinada por Luísa Amélia de queirós Brandão, poetisa sentimental, de quem, ao tomar posse, na sessão solene de 18 de outubro de 1921, disse ele: Idólatra da poesia, sou irmão espiritual do artista que se ajoelha ante o seu ídolo sagrado. E, por muito amor a poesia foi que escolhi, para patrocinar a minha cadeira, o nome ilustre de Luísa Amélia de Queirós, a poetisa destemida que, num ambiente contrário aos surtos do seu talento, vibrava na emoção admirável dos seus sentimentos, cantando-os em versos espontâneos, feliz nas suas convicções, ardente nos seus arrebatamentos, inabaláveis na sua fé, invencível nas suas paixões e máscula nos seus formosos ideais de concórdia, de ilusão, de amor e de glória.

De feito, Elias, na mocidade, dedicou-se à poesia. Cultivou o soneto, e compôs alguns, que lembram a definição de Celso Pinheiro - quatorze versos cheirosos.

Lapidador delicado do soneto, terno, apaixonado dos traços femininos - Elias cultivou também a trova, elegante e gracioso, sempre voltado para a mulher, nos seus atrativos físicos - na mulher em que ele pouco ou nada acreditava.

Conheci Elias de Oliveira em Fortaleza, no tempo em cursei o antigo Liceu do Ceará. Elegante, estatura acima da mediana, cabeleira basta, olhos amortecidos, inteligência ágil, vibrante, voz forte, dominadora - gozava o saudoso acadêmico de grande conceito intelectual. Vi-o mais de uma vez na tribuna do júri, celebrado de aplausos. Argumentador seguro, culto, dominava a platéia, os jurados - terror da acusação quando se encontrava na defesa, terror da defesa quando auxiliava a acusação. Palavra fácil, corrente, por vez irônica, sustentada de conceitos graves, com que se revelava o grande estudioso da ciência penal. Nesse tempo conquistara já grande fama e respeito como jurista, autor de "Idéia do Direito da Filosofia Helênica" (1919), "Inconstitucionalidade de Impostos" (1920), "Crime de Calúnia" (1925), "Intervenção Federal nos Estados" (1930), "Homicídio Culposo" (1932), "Criminologia das Multidões" (1934), "Crime de Incêndio" (1934), "Injúria pela Imprensa" (1934). anos depois, em 1952, publicou ainda "Crimes contra a Economia Popular".
A obra que o colocou entre os mais notáveis estudiosos do assunto, no Brasil como em outros países, foi, sem dúvida, "Criminologia das Multidões", estudo de psicologia coletiva aplicada ao Direito Criminal. Problema interessantíssimo o da multidão criminosa. Muitos, notadamente franceses e italianos, lançaram os fundamentos de um estudo longo e difícil - estudos quase sempre lacunosos - e mais completo que conheço antes de surgir o de Elias, é o de Scipio Sighele: A Multidão Criminosa.

No campo da arte, ninguém ofereceu pintura magnífica do crime coletivo como Zola, em "Germinal". É verdade que antes escritores de nomeada procuraram, nos seus livros, revelar a psicologia das multidões, como d'Annuzio, Sienkiewicz, Hugo, Manzoni - mas Zola foi real com os seus neuróticos, os seus anormais, os inoculadores do veneno da loucura no corpo coletivo.

Como disse, li Sighele - extraordinário de observações, mas com falhas que foram supridas, no meu entendimento, por Elias de Oliveira. Certíssimo o conceito de multidão, no jurista piauiense: multidão não é o povo que circula, as massas que compõem a nação, o público que enche as artérias de uma cidade. Há de compreender-se a multidão, inicialmente, no seu sentido psicológico. Não há multidão sem organização, embora momentânea, casual, provisória. Sustenta Elias que a multidão é o "agrupamento provisório e heterogêneo de pessoas, instantaneamente organizado, com um objetivo qualquer e cujos caracteres reproduzem, exagerados pela sugestão, qualidades comuns inferiores da maioria dos componentes, preponderando especialmente as tendências instintivas e bestiais reclamadas no inconsciente".

Esse recalque é o grande responsável pelo crime da multidão. Elias faz o que raros fizeram: buscou um gênio para a explicação da violência das multidões - Freud. Ainda não houve quem derrotasse Freud. Aliás, observei, certa feita, em um trabalho intelectual, que os recalques freudianos estão nas manifestações dos campos de futebol brasileiro, como nas arenas das touradas espanholas.

O notável piauiense repudia as classificações de multidão de famosos criminalistas.


A. Tito Filho, 16/01/1992, Jornal O Dia

SOBRE O CABELO

Um colégio no Rio e Janeiro não aceitou que um jovem de cocó freqüentasse as aulas, porque o regimento do educandário não permite e o moço, antes da matrícula, recebeu cópia das normas vigorantes. Houve protestos de cabeludos.

Faz anos sobre o assunto escrevi uma crônica concebida nos termos abaixo.

O fenômeno dos cabeludos é universal!

A juventude está usando cabelo crescido, cabelo grande. Não são poucos os rapazes cabeludos que desfilam nas ruas e nos clubes. Com eles se vêm preocupando intelectuais, estudiosos, jornalistas, psicólogos, psiquiatras, bem assim todas as camadas da sociedade. É justa a moda dos cabeludos? Devem os cabeludos gozar da aprovação geral, ou é condenável o processo dos cabelos que usam, cobrindo orelhas, cobrindo o cogote?

Do ponto-de-vista legal, ninguém lhes recusa o direito à moda que adotaram. Já o integro e culto Des. Fernando Lopes sobrinho atenta a eloqüência constitucional protetora dos jovens de cabelos grandes.

Os cabelos estão na história e na lenda dos humanos. Constituem material folclórico de subido valor. Houve tempo em que os cachinhos cortados de meninos e meninas eram usados pelos pais, encastoados em ouro, como berloques. A escritora francesa George Sand chegou a decepar a cabeleira e enviou-a a Musset, "como lembrança bárbara de sua dedicação sexual".

E as promessas de doação de rolo de cabelos aos santos? Refere Cascudo que essas promessas ainda são tradicionais no Brasil. A Cascudo também pertence esta informação: os cabelos valem material precioso para os processos de bruxaria. Os da cabeça enlouquecem ou matam. Os das partes pudendas anulam a virilidade.

Cabelo muito é atestado de masculinidade. Cabelo no peito indica valentia. De modo geral, os cabelos traduzem a força física, tradição filiada ao episódio de Sansão, com sua poderosa energia muscular, desaparecida no momento em que Dalila fez cortar a maçaroca do herói.

E a trunfa? Foi símbolo de coragem pessoal, como o cacho usado pelos homens do cangaço nordestino.

Meretriz, mariposa, horizontal, ou outro nome que tivesse a mulher de vida airada, durante muito tempo recebia a punição de ter o cabelo cortado, às vezes raspado. Conta Cascudo que houve antigamente a descalvação: descalvar era colocar a cabeça condenada em estado de calvície. Diz-se hoje mostrar a calva, quando se divulga crime escondido de alguém. Aplicava-se a descalvação aos crimes de felonia, falsidade e covardia.

Quem não se recorda das vaias dadas, nos colégios, aos alunos que apareciam de cabelo aparado? Ninguém esqueceu os versos do "Cabeça pelada. Urubu camarada".

No romantismo, a condição de poeta exigia uma basta cabeleira, à Castro Alves, como exigia tosse e pulmão fraco. Cabeludo e tuberculoso, eis o poeta romântico.

Por que os moços deixaram crescer os cabelos?

Seria o caso de perguntar também: por que praticam os jovens, crimes graves? Por que usam roupas berrantes? Por que dançam tomadas de frenesi, música quente, movimentadas, estonteante, provocante?

É que a mocidade está abandonada pelos pais, tomada de angústia, a angústia dos filhos injustamente apelidados de transviados, "quando eles só se transviam como uma reação contra a negligência, o amoralismo, o egoísmo dos pais, estes, sim, realmente transviados".

Que fazem as mães nos dias que correm? Entregam-se às atividades sociais, moram nos salões de beleza, passam as noites nos clubes de diversão ou nas salas elegantes de jogatina, sustentadas por tranqüilizantes.

Que deseja essa mocidade, frustrada, com os cabelos grandes, os trajes espalhafatosos, e bebida, a dança movimentada, o desenfreio? Protestar contra a sociedade que a abandonou, a principiar do abandono dos pais desafetuosos.

Leia-se a grande lição de um dos mais notáveis psiquiatras brasileiros: "Esses jovens procuram um meio de se fazerem personagens, com o objetivo de atrair sobre si a atenção dos pais e utilizam-se de toda sorte de estratagemas, dos mais simples e complexos aos mais condenáveis, da simples boemia vagabunda, como reação ao exemplo do pai que freqüenta bordéis, até às formas mais graves de transviamento moral, como reação contra a mãe que passeia de biquíni diante dos seus colegas de curso, ou se esquece de certas precauções à hora dos seus colóquios telefônicos adulterinos" - (Cláudio Araújo Lima - Imperialismo e Angústia).

Traje, cabelos grandes, música delirante - tudo simboliza protesto da mocidade contra o abandono em que a colocaram, abandono que gera a angústia dominadora da juventude.

Justifica-se o processo de rebeldia dos cabeludos. Esses cabeludos grandes, que dão cocó, têm uma causa. Muito bem. Mas são ridículos por dois motivos: oferecem uma idéia de pederastia e uma demonstração de falta de higiene. Convocam atenção para o ridículo. A música popular já ensinou que os cabeludos sugerem o desagradável:

"Olha a cabeleira do Zezé,
Será que ele é? Será que ele é"?

Demais disto, essas cabeleiras compridas criam uma expressão de esquisitice, de piolheira, de coisa comichona, sarnenta.

A mocidade pode ter razão de deixar crescer a cabeçola para atrair atenções. Mas a moda é feia e antipática. E já contagiou maduros e velhos, na ânsia da imitação. Maduros e velhos querem ser moços, pelo menos nos cabelos compridos.


A. Tito Filho, 05/05/1992, Jornal O Dia

CIVILIZAÇÃO X NATUREZA

Cavalos beirando o rio, ramagem de salça-do-campo e muçambê, borboletas, pássaros cantando...

Essa paisagem bucólica, contrastada apenas pelas águas sujas e o lixo, situada no trecho mais fétido do Riacho Mocha, entre as duas pontes, foi varrida do mapa.

A causa não foi uma enchente. Não foi um incêndio. Foi uma obra do governo municipal.

A obra é a galeria-esgoto, construída no ano passado. Uma obra antiecológica e cara.

Com a galeria o leito do riacho foi retificado, isto é, seu curso natural foi alterado e nele construído um canal primário de aproximadamente 400 metros. O leito foi calçado com pedras e cimento. Em ambos os lados do canal, duas pistas de piçarra. Nenhuma árvore foi plantada.

Com a galeria-esgoto, o verde que restava na área deu lugar ao cinza. O Sr. Chiquesa Dantas, proprietário do pequeno terreno na área, também deu sua contribuição: mandou cortar as mangueiras que restavam, em pleno Dia Mundial do Meio Ambiente.

Aquela área do Mocha merecia uma intervenção, e esta veio, só que de maneira equivocada. Ao invés de recuperar as margens - que protegem qualquer curso d'água - a obra acabou de destruí-las. E o pior: não resolveu o problema de saneamento. O lixo continua sendo jogado na área, os esgotos continuam escoando para o Mocha, sem nenhum tratamento.

Além de antiecológica e cara, a galeria-esgoto é uma obra feita sem nenhuma preocupação estética. É uma curva larga, deserta, cinza que destruiu a vegetação que restava e anulou os lajedos e os arcos da Ponte Velha.

Isso nos remete a um problema de linguagem muito sério. Como se sabe, os objetos e as coisas não existem somente em si mesmos. Eles constituem signos de linguagem. Como linguagem, a galeria-esgoto é uma obra negativa, não estimula nenhuma espécie de pensamento agradável.

Como reagiu a comunidade diante do tal fato? Em parte com indiferença. Em parte, dando total apoio. Não houve discussão ou questionamento. Nenhum educador ou "representante do povo" se manifestou. não houve protestos, nem mesmo da juventude ou dos estudantes. Isso demonstra o conformismo generalizado e a falta de opiniões independentes em Oeiras.

E vem mais coisa por aí. A Prefeitura já anunciou oficialmente que tem projeto de "retificação" de Riacho Pouca Vergonha. A faixa do Mocha, entre a Ponte Velha e o Poço dos Cavalos, também não está a salvo do "progresso".

Muita gente (ainda) acha que o Mocha deve ser preservado por causa de sua propalada "importância histórica". Mas um riacho deve ser conservado e limpo por ser curso d'água, pois a água é fonte de VIDA, e não por causa das esperas dos primeiros colonizadores piauienses.

O problema do Mocha e do Pouca Vergonha já foi objeto de alguns debates públicos e protestos. Boas alternativas já foram apresentadas, mas nem a comunidade e nem qualquer das administrações públicas fez qualquer tentativa séria pra solucionar o caso.

Se existir solução, não acreditamos que ela se encontre em projetos feitos em gabinetes que não vêem a luz do sol. No nosso modo de entender, não há necessidade de obras gigantescas, elas custam os olhos da cara, o tempo dos faraós já passou. não é tamanho nem a quantidade que resolvem, mas talvez a qualidade.

Seria leviano botar a culpa dos problemas ambientais de Oeiras exclusivamente no governo. Isso fica para os pobres de argumento. A verdade é que toda a sociedade está enferma. Essa enfermidade é muito mais evidente no Ocidente e sua deturpada idéia de progresso.

O distanciamento da natureza e a destruição do espaço vital é um fenômeno generalizado nos países capitalistas e de tradição judaico-cristã que vêem na natureza uma mera fonte de recursos econômicos.

Mocha, Pouca Vergonha, Amazônia, usinas nucleares, armas atômicas viajam no mesmo barco. No mesmo barco em que viajam escolas, partidos políticos, religião, fome, índios, menores abandonados, eleições presidenciais, capitalismo selvagem...

A poluição do Riacho Mocha e de Pouco vergonha e a destruição das suas margens é resultado de um processo histórico iniciado com a chegada do primeiro colonizador português em terras piauienses. É resultado principalmente do modo de viver dos oeirenses. Quem tiver alguma dúvida, basta olhar em volta. Ou para o próprio corpo.

Este comentário pertence ao brilhante oeirense Rogério Newton.


A. Tito Filho, 04/06/1992, Jornal O Dia

MISSÃO ACADÊMICA

As academias de letras, no Brasil, quase todas ou todas, inclusive a brasileira, limitam-se a reuniões de seus membros, para elogios mútuos, recepções de novos acadêmicos e respectiva discurseira. A mania generalizada está em escrever poemas e contos, meio pelo qual conseguem o estrelato, poesia e prosa as mais das vezes representativas de cruel subliteratura.

A Academia Piauiense de Letras foge ao figurino geral. Nela se apresentaram grandes poetas, a exemplo de Martins Napoleão, Moura Rego, Martins Vieira, Lucídio Freitas, entre outros, e notáveis prosadores, do tope de Clodoaldo Freitas, Higino Cunha, João Pinheiro, Abdias Neves, Artur Passos, para lembrar alguns. Entre os vivos existem muitos que honram o sodalício.

A Academia, porém, não ficou nos poetas, nos romancistas, nos contistas. Convocou matemáticos, médicos, engenheiros, juristas, enfim aqueles que se projetaram em qualquer ramo do saber humano. Nem só poetas e prosadores bastam à representação cultural das comunidades.

O jornal teresinense "Correio do Piauí", em editorial do dia 15 de março, escreveu com justiça as palavras seguintes, sob o título APL - UMA VANGUARDA NO PIAUÍ: "Graça Aranha, em famoso discurso na Academia Brasileira de Letras, afirmava: 'se a Academia não se renova, morra a Academia'. Todos, inclusive os próprios acadêmicos, querem, de vez em quando, atacar a instituição que abriga os 40 eleitos que compõem seu quadro. Elas, entretanto, estão de pé e assim continuaram por toda a vida. Haverá sempre uma continuidade dos seus trabalhos. Por isso eles são 'imortais'.

"Trazendo o assunto para a Academia Piauiense de Letras, devemos dizer que, apesar de atacada, nunca saiu para o contra-ataque e nem deixou de cumprir com as suas atividades estatuárias. Devemos dizer, até, que em determinados momentos foi a APL o único órgão a se posicionar contra desmandos governamentais e a propor inovações. Mesmo sendo de linha conservadora, a Academia Piauiense de Letras tem se mostrado, em alguns aspectos, progressista".

"Basta lembrar que foi a Academia Piauiense de Letras a trazer o Cavaleiro da Esperança, o Prestes, ao Piauí para debate. E ainda em um momento que ele era considerado 'elemento perigoso'. Foi a Academia Piauiense de Letras a trazer o médico Eustáquio Portella para falar sobre a Maconha - assunto tabu. Eustáquio chegou, inclusive, a defender o uso da mesma. Outros exemplos poderíamos dar. Contudo, os dois ilustram muito bem o ar de modernidade que é respirado, de quando em vez, na casa de Lucídio Freitas".

"Presidida pelo Mestre A. Tito Filho, recém-eleito para mais um mandato, temos em suas próprias palavras que as 'Academias não devem ocupar apenas as meras conversações de caráter literário, a portas fechadas, em que mais freqüentes são os elogios recíprocos. As academias, antes de tudo, têm obrigações educacionais e culturais para com a coletividade, condenando a amoralidade dos dirigentes governamentais e as futilidades das elites empanturradas de dinheiro de origens obscuras'".

"Mais adiante A. Tito Filho afirma que a Academia Piauiense de Letras 'não se calará diante de escândalos sem conta e frente ao desalento geral de vil pobreza abandonada, sem a alimentação, moradia, saúde, escola e à qual resta a confiança em Deus, que assumiu nossa humanidade e nasceu num estábulo em Belém'".

"Poucas entidades, mesmo as consideradas de esquerda, assumem tal postura, tal compromisso. E o que é mais importante, têm sustentáculo moral para fazerem-se respeitadas".

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Muitas outras personalidades a APL trouxe a Teresina, como o médico Correia Lima, autoridade em AIDS, que ofereceu magnífica aula a centenas de estudantes na Escola Técnica; Afonso Tarantino, notável pneumologista; Assis Brasil, Esdras Nascimento e Afrânio Coutinho, para palestras na Universidade; Austregésilo de Athayde, presidente da Academia Brasileira de Letras, e muitos outros, para cumprimento da missão social acadêmica.


A. Tito Filho, 19/03/1992, Jornal O Dia

JÂNIO QUADROS

Morreu Jânio da Silva Quadros, nascido nas bandas do antigo Mato Grosso, no ano de 1917. Ao abotoar o paletó pela derradeira vez, havia inteirado 75 anos.

Desde cedo, fixou-se em São Paulo. Acatado professor de Português e História nos colégios secundários. Ganhou a estima da estudantada: cumpria o dever e sabia ensinar. Por influência dos meios estudantis, ingressou na política, com a pretensão de eleger-se vereador. Pobre, conquistou simpatias com a sinceridade das suas falas aos leitores.

Era 1947. Somente em alguns estados havia coincidência de eleições de governadores, senadores, deputados e cargos eletivos municipais. As presidenciais eram de cinco em cinco anos, coincidentes com alguns governadores, como a da Parnaíba, por exemplo, a quem se conferiu um qüinqüênio de mandato.

Em são Paulo eram poucos as coincidências dos diversos pleitos. Jânio, na disputa da vereança, logrou segunda ou terceira suplência num partido sério, mas pequeno. O presidente Dutra, porém, declarou guerra aos comunistas e, com a conivência da Justiça e do Congresso, cassou o registro do Partido Comunista e o mandato de quantos comunas estivessem no seu próprio grêmio partidário ou metidos noutras agremiações. Sobraram vagas e deu-se o aproveitamento de Jânio Quadros, para a mais fulminante carreira política feita no Brasil.

Mal chegou ao final do mandato de vereador, Jânio era conduzido à Assembléia Legislativa. Não terminou os quatro anos da legislatura, consagra-se prefeito de são Paulo, derrotando oito partidos fortes e dezenas de políticos célebres e endinheirados. Foi a luta do TOSTÃO CONTRA O MILHÃO. Nascia o FENÔMENO. Antes de findar o período administrativo na Prefeitura, mais uma vez vitória retumbante levava-o ao governo do estado, em que passou os quatro anos completos do mandato, embora alguns meses antes do fim já estivesse eleito deputado federal pelo Paraná.

Nas eleições de 1960, mais de seis milhões de brasileiros lhe conferiram a Presidência da República. Assumiu-a em 31 de janeiro de 1961 e a 25 de agosto do mesmo ano renunciou ao poder, na tentativa, segundo penso, de um golpe, para fechar o Congresso e criar regime ditatorial.

Tentou voltar ao cenário político. Derrotado na candidatura ao governo de São Paulo. Direitos políticos suspensos por dez anos. Em 1985, ganhou a eleição de prefeito de São Paulo, assumindo a primeiro de janeiro de 1986. Administração modelar. Sofre permanente campanha de descrédito dos poderosos órgãos de comunicação da capital paulista. Leiam, porém editorial do "Jornal do Brasil", do Rio, edição de 20-04-88, página 10: "Eleito na última safra de prefeitos, o Sr. Jânio Quadros trouxe para o cargo uma convicção que logo pôs em prática: a de que a administração pública não é feita para dar lucro nem prejuízo. A folha de pessoal, para não se tornar uma aberração, deve manter-se em torno de 50% por cento da receita, o que permite a preservação da capacidade investimentos. São Paulo, até recentemente, parecia entregue à sina dos loteamentos clandestinos: ocupavam-se terras e prédios a torto e a direito, em nome do SOCIAL. O Sr. Jânio Quadros passou a desocupar em nome do interesse público, o que também é uma formar de agir num contexto SOCIAL. Com isto se tem uma cidade moderna administrada em figurino moderno. O tamanho da proeza, tratando-se do Brasil e de uma megalópole granjeou para o prefeito de são Paulo o reconhecimento público. A popularidade bafejou o administrador que, ao populismo barato, opôs as idéias de eficiência e respeito às autoridades".


A. Tito Filho, 12/03/1992, Jornal O Dia

OS HUMILDES

Na Academia Piauiense de Letras possuo o meu voto. Nunca pedi que os colegas acadêmicos me concedessem o voto que lhes pertence para a eleição de candidato de minhas simpatias, pois se assim fosse Possidônio Queiroz já estaria sentado numa poltrona da Casa de Lucídio Freitas, por incontestável merecimento. Humilde, simples, bondoso, amigo leal, sincero, correto nas atitudes, tem memória privilegiada, conhecimento profundo da história do Piauí e de sua antiga capital, Oeiras, riquíssima de tradições, e de grandezas cívicas. Possidônio e Oeiras se confundem fraternos, amada e amante de amor eterno. Raros no Piauí escrevem como Possidônio, linguagem escorreita, na usança do português popular ou da língua clássica quando quer, e num ou noutro tem o respeito dos mestres como ele.

Gosto de Possidônio, consultório da gente de Oeiras. Venero-o. Colocou a cultura piauiense a serviço dos sentimentos de sua pátria maior, Oeiras, cuja glória abastece o Piauí sem memória e Teresina mutilada de ambições nefastas.

Casualmente folheio um jornalzinho antigo de Oeiras e nele deparo com um trabalho de Possidônio, uma crônica, gênero difícil, que ele domina facilmente. Homenagei-o transcrevendo-a. Leiam-na. Curiosa, concepção pular, como tudo que presta, intitulada O HOMEM QUE DAVA LEITE:

"Parece que ainda estou a ver. Estatura mediana, gordo, por isso mesmo parecendo mais baixo, xingador, amante da boa pinga, palavroso, quase valente, festeiro, vaqueiro hábil e corajoso, autoritário no meio onde morava; eis, em rápidas pinceladas, o retrato do nosso herói, - Raimundo José de Figueiredo, ou, simplesmente, Raimundo Figueiredo, como era tratado.

Há quarenta anos atrás, todo mundo o conhecia em Oeiras. Residente no interior do município, no lugar Malhada Real, há poucas léguas da sede, vinha constantemente à cidade. Aqui privava com as pessoas mais categorizadas. Muitos gostavam de ouvi-lo, porque a conversa entremeada de palavras menos doce, de constantes invocações ao Diabo e de pilhérias salgadas, despertavam gargalhadas estrepitosas.

Raimundo Figueiredo nunca vinha à cidade sem palitó. A camisa, porém, lhe aparecia por baixo do palitó, na frente e atrás, porque a trazia sempre por fora das calças. Isto dava um aspecto bizarro.

Quando moço foi acometido de pertinaz moléstia, que, por pouco o não levou à sepultura. Permaneceu em estado de coma por vários dias. Restabelecido, contava, grave, sentencioso, que estivera no inferno e que lá muita gente conhecida, cujos nomes declinava. Desde então, tornou-se famigerado praguejador, vomitando injúrias, a cada momento.

O que vai dito bastava para a definição do homem, que veio do "outro mundo" sobremodo amigo do Tinhoso, amigo, de tal forma que não lhe podia nunca tirar o nome da boca. Entretanto, não é sob este aspecto, que lhe querem focalizar a personalidade. O que vamos dizer de Raimundo Figueiredo é que ele era um homem que dava leite, e dava muito leite.

Gostava de dizer, de afirmar essa faculdade que possuía, que de certa forma, o colocava acima dos outros homens, que não sabiam dar leite. E não admitia que ninguém lhe duvidasse da assertiva. A mais de uma pessoa, por duvidar do que ele dizia, sujou a cara e a roupa de leite. Era desacreditá-lo, e ele, num movimento rápido, sacava de sob as vestes um peito enorme, referto do liquido branco, e, sem mais demora, mandava contra o incrédulo um forte esguicho que o molhava todo.

Raimundo Figueiredo amamentou a mais de um filho. Não gostava de ouvir choro de criança. Por isso, quando a mulher saía para lavar roupa e a criança tinha fome, ele acalentava o filho pequeno, dando-lhe o peito a mamar. Daí, lhe adveio o criar leite, e muito leite. Cabra macho, não enjeitava contenda.

Genecomasto, na expressão da palavra, possuía mamas enormes. Nesse particular poucas mulheres lhe levavam a palma. Podia tirar, dos grandes peitos, sempre refetos, como costumava afirmar, copos de leite. Isso, eu o ouvi dizer mais de uma vez.

Gostava muito de sambar, de comandar as danças nos folguedos roceiros. Nas festas de casamento, nunca deixava de pronunciar discursos bombásticos, geralmente muito aplaudidos.


Era perdido por mulheres. Casado, tinha cinco ou seis filhos do matrimônio e vários de contrabando. Se fosse vivo estaria escandalizado por ver tantos homens operando-se no desejo de se transformarem em mulheres. Não fez nenhuma operação. E, no entanto, tinha seios enormes e amamentou crianças. Cousas da vida".


A. Tito Filho, 23/05/1992, Jornal O Dia

DESERTIZAÇÃO


Era no tempo das cousas sérias, e uma das seriedades da vida brasileira residia nos concursos de magistério. Encontrava-me na direção do Colégio Estadual do Piauí, educandário que hoje se denomina Zacarias de Góis, o fundador, ainda em Oeiras, antiga capital, nos anos de 1845, então chamado Liceu.

Promovi alguns concursos no tradicional colégio e era empolgante assistir aos exames respectivos, como a difícil defesa de tese que os candidatos escreviam sobre assunto da disciplina.

Lembro-me bem do concurso de Geografia do Brasil, com três candidatos: Darcy Fontenele de Araújo, Delfina Boavista e João Gabriel Baptista, professores cultos, admirado e com muita experiência didática. Cinco mestres de reconhecida idoneidade intelectual compunham a banca examinadora: Simplício Mendes, Álvaro Ferreira, Valdemar Sandes, Lysandro Tito de Oliveira e James Azevedo.

Desejo neste modesto artigo de jornal relembrar que os três candidatos alcançaram, merecidamente, notas distintas, que os aprovou para a cadeira pretendida, em caráter vitalícia.
Concurso famoso, de muita repercussão.

Dos três candidatos, Darcy Fontenele de Araújo alcançou o primeiro lugar. A tese que ofereceu à consideração dos examinadores intitulou-se "A Desertização do Nordeste Brasileiro e do Vale do Parnaíba" - discutida valente e brilhantemente pelo autor.

Eis as conclusões a que chegou Darcy, ao escrever o seu magnífico trabalho, no ano de 1951:

"I - O regime fluvial das caatingas e carrascos do Vale do Parnaíba é idêntico ao da zona semi-árida do Nordeste brasileiro, tanto em relação às médias pluviométricas, como no que diz respeito à distribuição das chuvas anuais. Duas são as estações: uma chuvosa e outra seca.

II - Registram-se no Vale do Paraíba os mesmos fatores que concorrem para a agravação da aridez ou desertização do Nordeste: a) verões prolongados; b) devastação do revestimento vegetal do solo, inclusive das margens dos rios, praticado pelo homem; c) as secas periódicas.

III - A desertização do Nordeste e do Vale do Parnaíba não tem impedido o aumento de população nas duas regiões. Do adensamento demográfico tem resultado a intensificação da ação humana sobre o meio físico, como fator de desertização nas duas regiões.

IV - Reflete-se no Parnaíba a desertização do seu vale, através do empobrecimento dos grandes afluentes. Esta e outras causas que atuam negativamente sobre o curso do rio poderão levá-lo sucessivamente à extrema debilidade, ao regime dos rios nordestinos e, finalmente num estágio mais avançado, em fundo impossível de ser determinado, poderão transformá-lo num oeud, do tipo saariano, descendo do planalto para perder-se nos areais do leito, sem atingir o termo da longa caminhada até o oceano e constituindo simples vestígios de uma bacia hidrográfica desaparecida".

O problema do rio Parnaíba, como vê, mostra-se antigo. Difícil a salvação.


A. Tito Filho, 22-23/03/1992, Jornal O Dia

BACANAL

Corria 1964. Era março. Principiozinho do mês, um ou dois no calendário, parti de Teresina, por terra, no rumo do Rio de Janeiro. Viagem de bom recreio. Da viagem participava José Fernandes do Rego, meu primo, brilhante jornalista, e uns três amigos dele. Primeiro Fortaleza, onde se abasteceu o carro do necessário, desde a gasolina a bebedoria e comedoria. A dormida dava-se debaixo das árvores frondosas, com riacho por perto. Redes boas de descanso. Percurso longo, por estradas ainda sem asfalto. Em Campina Grande, café e uns beijuzinhos de côco ralado por cima. Cuzcuz e muita manteiga sertaneja. Depois, João Pessoa e Recife, no primeiro governo Miguel Arrais. Prosseguiu-se até Penedo, nas Alagoas, lugar de muita gente doente, boa feira de artesanatos, restaurantes de panelada e mocotó de vaca. Travessia do São Francisco, em pontão. Aracaju em seguida, bonitinha, dengosa, noitada alegre na praça grandona. Perto o palácio do governador da época, depois deposto, Seixas Dória. Agora Salvador, de ruas velhas, ladeirentas, comida apimentada que dava para soprar os peitos. Daí para frente, pela asfaltada Rio-Bahia, chegou-se à segunda capital brasileira, a cidade dita maravilhosa, que eu já conhecia como a palma da minha mão.

Hospedei-me com o primo José Rego, no seu apartamento da rua das Laranjeiras, visitado por gente famosa do tipo de Oscar Niemeyer, Raul Riff, por alguns comunistas de prestígio e figuras outras do governo comunistas de prestígio e figuras outras do governo João Goulart. Estive no comício do dia 13 de março, misturado com o poviléu entusiasmado e faminto. O presidente, ao lado da esposa, incentivava os aplausos com promessas de melhorar a vida do pobre. Pelas onze da noite, cansado, retornei à minha hospedagem.

Dia seguinte, José Rego me fazia convite para uma festa de aniversário no apartamento de amiguinha sua, no bairro do Flamengo. Cada convidado devia comparecer com o presente de comida ou bebida. A festa teria inicio às 11 da manhã.

De mim, não conhecia praticamente pessoa alguma. Muitos rapazes e moças, sentados, em palestrações alegres e por vezes gargalhantes. Consumia-se boa quantidade de álcool. Pastel em quantidade. Pelas duas da tarde, vi chegar uma garota do Piauí, filha adotiva de falecido magistrado, minha antiga aluna no velho Liceu.

Iniciaram-se as danças pelas 15 horas. Os pares, homens e mulheres, bêbedos, dançavam como se estivessem numa cama de casal. Houve um grito de comando, alto, para que todos tirassem a parte de cima das vestes. Todos nus da cintura para cima. Seios saltavam. Orgia sexual em que garotas e coroas se entregavam despudoradamente. Cenas de invulgar erotismo. Pouco depois, todos pelados machos e fêmeas.

Num canto, em mesa discreta, fiquei ao lado de José Rêgo, dois rapazes e duas moças, conversando e espiando o gratuito espetáculo. Chamei minha ex-aluna, inteligente, baixinha, mas bonita. Veio até mim, puxou cadeira, sentou-se, começou a chorar. Gostava de cocaína. Julgava-se desgraçada, infeliz, prostituta, ordinária. Dei-lhe alguns conselhos que ela recusou, considerando-se perdida.

Era o começo das bacanais de luxúria, bacanais de depravamento, como as de Roma na antiguidade, promovidas pelos Neros e Calígulas, tipos integralmente degenerados.

Quatro anos mais tarde, em 1968, em Paris, a juventude decretava a rebelião total contra os restos de beleza de uma sociedade hipócrita mas que pelo menos viveu inesquecíveis momentos de alegria.

A. Tito Filho, 29-30/03/1992, Jornal O Dia

DONDON

No cartório do registro civil de Livramento, hoje José de Freitas, deve constar o nome de Antônio Castelo Branco, que o Piauí todo conhece pela alcunha de Dondon, fundador em Teresina de jornal famoso, a que deu o nome de "O Denunciante" e em cuja edição de número 12, de 18 de maio de 1927, lemos, na última página, os dez mandamentos que o jornalista escreveu para que fosse possível o seu segundo casamento com a mesma mulher. Ei-los, mudando-se a grafia da época para adaptá-la aos dias correntes:

"Assim como tem o velho e o novo é muito natural que tenha o velho e o novo casamento com a mesma mulher... e hoje véspera do meu casamento fazendo 25 anos que sou casado, neste caso venho festejar as bodas... propondo um novo casamento com a mesma mulher, visto como o primeiro não prestou... porém com as seguintes condições: 1) não ter (minha mulher) contato com sua irmã Porcina Dias Ribeiro. 2) não ter contato com qualquer um dos filhos que se achar em desavença comigo. 3) nada fazer sem me ouvir, nem que seja para mudar uma palha de um lugar para outro. 4) eu não estando em casa não deve sair para parte alguma nem que seja na vizinhança... e nem andar na rua depois das seis horas da tarde. 5) se achar em casa sempre na hora do café pela manhã, na hora do almoço, na hora do jantar. 6) todas as vezes que tiver conhecimento de que o Bispo Dom Severino Vieira de Melo tem de pregar, deve largar o que estiver fazendo para ir ouvir o sermão do mesmo. 7) no lugar em que nos encontramos sempre que houver missa aos domingos, temos que irmos juntos. 8) saímos juntos de braços dados sempre que eu entender. 9) fico com os poderes de aumentar ou diminuir todos os mandamentos do novo casamento, sempre que julgar preciso. 10) cumprindo todos estes mandamentos, terá direito a tudo que estiver no meu alcance".

Dondon deu muito trabalho aos políticos piauienses de todas as categorias: governadores, deputados, homens de governo. Contou pelo jornal a luta de governo. Contou pelo jornal a luta desenvolvida para adquirir tipografia. E escreveu que a vitória lhe custou o seguinte: 1) Custou-me no começo de 1919 o major do Exército Antônio da Costa Araújo Filho apoderou-se de três vacas minhas, sem o meu consentimento. 2) Custou-me no dia 13 para amanhecer 14 de maio de 1925 terem querido tirar a minha vida a traição e que ainda recebi três bordoadas, pro este motivo deu em resultado eu passar 21 meses e quatro dias em casa sem sair à rua. 3) Custou-me no dia 19 de setembro de 1924 mandarem-me meter na cadeia, quando foi no dia 8 de outubro do mesmo ano tornaram a me meter na cadeia e esta segunda vez ainda acharam pouco, da cadeia ainda me mandaram para ser internado no asilo dos doidos, onde passei dias contra a minha vontade e dois por minha conta...".

Jornalismo saboroso, com defeitos e qualidades, muito lido pelos teresinenses da década de 1920. As edições esgotavam-se rapidamente. Uma delas, a que tratou dos enterros na cidade, tornou-se antológica, e ainda hoje é citada das mais interessantes reportagens da imprensa da capital piauiense. Mas a história dos enterros será contada noutra oportunidade.

Dizia-se que Dondon tinha alguns parafusos frouxos, mas a verdade está em que raros possuíam tanta inteligência quanto ele.


A. Tito Filho, 18/03/1992, Jornal O Dia 

sexta-feira, 30 de março de 2012

RESTAURANTES

Não encontrei notícia do primeiro restaurante de Teresina. Anotei reclame de jornal que oferecia os préstimos do Hotel Teresinense, em 1875, ao público: bifes e carne assada, no almoço: sopa, carne cozida e assada no jantar. Pratos abarrotados. Comia-se até fartar. Li, em jornal do anos seguinte, sobre o estabelecimento de José Pico, com o nome de CASA DO PASTO - e ele era vaidoso da sua tenda de comedoria: anunciava comidas italianas, francesas, portuguesas e inglesas. Aos domingos, PANELADAS DE MOCOTÓS.

Quando vim de Barras, terra boa do Piauí, lugar do meu nascimento, para Teresina, acompanhando o pai e a madrasta, filho único que eu era, - a família alugou casa na rua da Glória (Lisandro Nogueira), mas depressa se arrumaram os trens e deu-se a muda para a rua São José (Félix Pacheco). Nos dias dominicais, o saudoso genitor me mandava ao Bar Carvalho, o mais freqüentado da cidade - café, sorvete, chocolate, refrescos, no amplo salão de frente para a Praça Rio Branco; por trás outra sala espaçosa, em que se alinhavam as mesas para o almoço e o jantar. Que comida! Zecão, o popularíssimo proprietário, contratou cozinheiro espanhol, o Gumercindo, cheio de banhas, o criador de um prato que dava água na boca, pois o cheiro bom da iguaria obrigava as papilas gustativas a extraordinário funcionamento - o filé de grelha, feito na chapa do fogão, e o mestre cuca o enfeitava com duas azeitonas, um pouco de alface, farofa e umas vinte ervilhas.

Lá ia eu, a carregar marmitas, buscar a bóia do domingo, no Bar Carvalho. Meu pai dava folga à competente e carnuda cabocla cozinheira no dia do Senhor. Na mercearia defronte da residência, do português José Gonçalves Gomes, completava-se o almoço com a gostosa sardinha de Portugal.

Conheci o restaurante do DOUTOR, especialista em mão-de-vaca e panelada. De segunda classe. refeição apetitosa, que o freguês carregava de pimenta malagueta de soprar o vento. Alguns cachorros vadios aguardavam, olhos pedintes, o osso que os mal-educados atiravam ao chão, depois de limpá-los, como roedores.

Na década de 40, Pedro Quirino fundou o RESTAURANTE ACADÊMICO, com freguesia de operários e doutores. Comida boa, barata, limpa, elogiada.

Nesses bons tempos comer representava um gesto de sabedoria. Comer desofisticadamente. Comer sem tinturas, comer sem estrangeirice, comer sem bebida de refrigerantes engarrafados, nisto vale sabedoria. Sabedoria de vida.

Teresina ingressou na ERA dos acepipes sem graça e sem gosto. Paga-se o luxo, a gorjeta gorda, a notícia no jornal. Refeições melosas, coloridas, de preço sem peias. Naqueles velhos tempos, o garçom punha o prato de arroz e o escolhido no cardápio defronte do cliente e este ficava a vontade, usando os pirões da forma que lhe aprouvesse. De algum tempo a esta data, o empregado comanda o modo de servir - e de colheres, treinado, vai botando em escolhidos espaços do prato uma porçãozinha de cada cousa que compõe o raquítico almoço ou jantar de gente de dinheiro fácil. Existem pratos do universo internacional, mais caros e mais intragáveis.

Restaurantes dos velhos tempos da Teresina de dinheiro pouco, dinheiro de pé-de-meia, - da Teresina do Manuel Português, que vendia empada, e uma só punha o sujeito de barriga cheia, sem necessidade de almoço ou jantar. Empada sadia, que dispensava o óleo de rícino para limpar as tripas.

O que passou, passou - verdade estabelecida por Gervantes no tempo em que os homens escreviam para a eternidade.


A. Tito Filho, 26-27/04/1992, Jornal O Dia

POMBAIS

José Eduardo Pereira, inteligente e culto, jornalista arguto e atualizado, tratou, nesta página, faz dois ou três dias, dos conjuntos habitacionais de Teresina, e trouxe à baila angustiantes problemas relacionados com a cidade. Um sobre quem administra a capital do Piauí, o outro a respeito das casinholas que uma multimilionária companhia de habitação constrói para auferir lucros inacreditáveis à custa da perversidade com os pobres. Parece que se trata de órgão de banqueiros nacionais ou financiadoras internacionais. Não sei.

No começo do século um bom governador fez o abastecimento dágua canalizada de Teresina, e outro, Miguel Rosa, inaugurou a luz elétrica, conquistas que ainda hoje permanecem com o Estado. A raquítica rede de esgotos de algumas ruas centrais foi obra estadual.

No caso da construção de obras, os governadores bem que poderiam efetuar as derribadas dos prédios antigos, mas submeter as novas construções a rigorosa obediência de normas urbanísticas, e assim também relativamente às modificações nas cousas públicas.

Veio abaixo o prédio em que se abrigam várias repartições e no lugar se quis levantar o centro administrativo do Piauí.  O esqueleto monumental, por falta de dinheiro, foi vendido, e no lugar se encontra o espigão do Ministério da Fazenda, quebrando-se o alinhamento da rua Rui Barbosa. Liquidou-se a praça Pedro II, tão bonita, de muitas recordações espirituais, e no lugar se estabeleceu grande concentração de prostitutas, alcoólatras, veados, viciados em droga e pivetes. A quem cabe a nova feição? Ao governo estadual. Outro governador pôs por terra a velha penitenciária e construiu o vaidoso Verdão, depois que se inutilizou o trânsito em ruas da cidade. Antes, houve o governante que mandou construir um prédio no meio da praça Demóstenes Avelino, e o espalhafato horroroso continua lá, agora de propriedade particular, e nele, no prédio, se vendem carnes, bofes, vísceras, cabeças de porco, peixes e outros produtos, espalhando-se fedentina por todos os arredores.

São inúmeros os exemplos nocivos. Ninguém sabe quem administra a cidade. Antigamente essas práticas aberrantes constituíram crime contra o patrimônio popular.

Observe-se o caso desses conjuntos habitacionais em que residem os humildes párias de Teresina e os milhares que, vindos do interior, foge ao tristissimo quadro da zona rural e das comunidadezinhas mortas, cada vez mais pobres e sem condições de vida. Nessas centenas de casinholas, todas do mesmo jeito, se alojam famílias de cinco, seis ou mais pessoas. Com pouco tempo esses POMBAIS passam a favelas e se enriquecem de biroscas, prostibulos, freges, botecos, bocas-de-fumo e crimes. Meninas que ainda não menstruam já constituem raparigagem. Os últimos tipos residenciais receberam o nome de EMBRIÃO, constituídos de saleta, quarto e banheiro. Só. Nessas residências os casais só se relacionam sexualmente depois da última novela, quando a filharada consegue dormir. Se um menino ou menina acorda arregala os olhos na presença do espetáculo dos pais pelados.

Esses conjuntos habitacionais são feios, casas emendadas uma nas outras. Alguns felizardos ganham fortuna na venda de terrenos para que nestes se levantem esses prediozitos que ofendem a dignidade de todos os enteados de Deus, filhos da injustiça dos homens maus, os banqueiros, e dos políticos de boa fé, que apenas agravam problemas comunitários.


A. Tito Filho, 11/02/1992, Jornal O Dia