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sexta-feira, 30 de março de 2012

RESTAURANTES

Não encontrei notícia do primeiro restaurante de Teresina. Anotei reclame de jornal que oferecia os préstimos do Hotel Teresinense, em 1875, ao público: bifes e carne assada, no almoço: sopa, carne cozida e assada no jantar. Pratos abarrotados. Comia-se até fartar. Li, em jornal do anos seguinte, sobre o estabelecimento de José Pico, com o nome de CASA DO PASTO - e ele era vaidoso da sua tenda de comedoria: anunciava comidas italianas, francesas, portuguesas e inglesas. Aos domingos, PANELADAS DE MOCOTÓS.

Quando vim de Barras, terra boa do Piauí, lugar do meu nascimento, para Teresina, acompanhando o pai e a madrasta, filho único que eu era, - a família alugou casa na rua da Glória (Lisandro Nogueira), mas depressa se arrumaram os trens e deu-se a muda para a rua São José (Félix Pacheco). Nos dias dominicais, o saudoso genitor me mandava ao Bar Carvalho, o mais freqüentado da cidade - café, sorvete, chocolate, refrescos, no amplo salão de frente para a Praça Rio Branco; por trás outra sala espaçosa, em que se alinhavam as mesas para o almoço e o jantar. Que comida! Zecão, o popularíssimo proprietário, contratou cozinheiro espanhol, o Gumercindo, cheio de banhas, o criador de um prato que dava água na boca, pois o cheiro bom da iguaria obrigava as papilas gustativas a extraordinário funcionamento - o filé de grelha, feito na chapa do fogão, e o mestre cuca o enfeitava com duas azeitonas, um pouco de alface, farofa e umas vinte ervilhas.

Lá ia eu, a carregar marmitas, buscar a bóia do domingo, no Bar Carvalho. Meu pai dava folga à competente e carnuda cabocla cozinheira no dia do Senhor. Na mercearia defronte da residência, do português José Gonçalves Gomes, completava-se o almoço com a gostosa sardinha de Portugal.

Conheci o restaurante do DOUTOR, especialista em mão-de-vaca e panelada. De segunda classe. refeição apetitosa, que o freguês carregava de pimenta malagueta de soprar o vento. Alguns cachorros vadios aguardavam, olhos pedintes, o osso que os mal-educados atiravam ao chão, depois de limpá-los, como roedores.

Na década de 40, Pedro Quirino fundou o RESTAURANTE ACADÊMICO, com freguesia de operários e doutores. Comida boa, barata, limpa, elogiada.

Nesses bons tempos comer representava um gesto de sabedoria. Comer desofisticadamente. Comer sem tinturas, comer sem estrangeirice, comer sem bebida de refrigerantes engarrafados, nisto vale sabedoria. Sabedoria de vida.

Teresina ingressou na ERA dos acepipes sem graça e sem gosto. Paga-se o luxo, a gorjeta gorda, a notícia no jornal. Refeições melosas, coloridas, de preço sem peias. Naqueles velhos tempos, o garçom punha o prato de arroz e o escolhido no cardápio defronte do cliente e este ficava a vontade, usando os pirões da forma que lhe aprouvesse. De algum tempo a esta data, o empregado comanda o modo de servir - e de colheres, treinado, vai botando em escolhidos espaços do prato uma porçãozinha de cada cousa que compõe o raquítico almoço ou jantar de gente de dinheiro fácil. Existem pratos do universo internacional, mais caros e mais intragáveis.

Restaurantes dos velhos tempos da Teresina de dinheiro pouco, dinheiro de pé-de-meia, - da Teresina do Manuel Português, que vendia empada, e uma só punha o sujeito de barriga cheia, sem necessidade de almoço ou jantar. Empada sadia, que dispensava o óleo de rícino para limpar as tripas.

O que passou, passou - verdade estabelecida por Gervantes no tempo em que os homens escreviam para a eternidade.


A. Tito Filho, 26-27/04/1992, Jornal O Dia

POMBAIS

José Eduardo Pereira, inteligente e culto, jornalista arguto e atualizado, tratou, nesta página, faz dois ou três dias, dos conjuntos habitacionais de Teresina, e trouxe à baila angustiantes problemas relacionados com a cidade. Um sobre quem administra a capital do Piauí, o outro a respeito das casinholas que uma multimilionária companhia de habitação constrói para auferir lucros inacreditáveis à custa da perversidade com os pobres. Parece que se trata de órgão de banqueiros nacionais ou financiadoras internacionais. Não sei.

No começo do século um bom governador fez o abastecimento dágua canalizada de Teresina, e outro, Miguel Rosa, inaugurou a luz elétrica, conquistas que ainda hoje permanecem com o Estado. A raquítica rede de esgotos de algumas ruas centrais foi obra estadual.

No caso da construção de obras, os governadores bem que poderiam efetuar as derribadas dos prédios antigos, mas submeter as novas construções a rigorosa obediência de normas urbanísticas, e assim também relativamente às modificações nas cousas públicas.

Veio abaixo o prédio em que se abrigam várias repartições e no lugar se quis levantar o centro administrativo do Piauí.  O esqueleto monumental, por falta de dinheiro, foi vendido, e no lugar se encontra o espigão do Ministério da Fazenda, quebrando-se o alinhamento da rua Rui Barbosa. Liquidou-se a praça Pedro II, tão bonita, de muitas recordações espirituais, e no lugar se estabeleceu grande concentração de prostitutas, alcoólatras, veados, viciados em droga e pivetes. A quem cabe a nova feição? Ao governo estadual. Outro governador pôs por terra a velha penitenciária e construiu o vaidoso Verdão, depois que se inutilizou o trânsito em ruas da cidade. Antes, houve o governante que mandou construir um prédio no meio da praça Demóstenes Avelino, e o espalhafato horroroso continua lá, agora de propriedade particular, e nele, no prédio, se vendem carnes, bofes, vísceras, cabeças de porco, peixes e outros produtos, espalhando-se fedentina por todos os arredores.

São inúmeros os exemplos nocivos. Ninguém sabe quem administra a cidade. Antigamente essas práticas aberrantes constituíram crime contra o patrimônio popular.

Observe-se o caso desses conjuntos habitacionais em que residem os humildes párias de Teresina e os milhares que, vindos do interior, foge ao tristissimo quadro da zona rural e das comunidadezinhas mortas, cada vez mais pobres e sem condições de vida. Nessas centenas de casinholas, todas do mesmo jeito, se alojam famílias de cinco, seis ou mais pessoas. Com pouco tempo esses POMBAIS passam a favelas e se enriquecem de biroscas, prostibulos, freges, botecos, bocas-de-fumo e crimes. Meninas que ainda não menstruam já constituem raparigagem. Os últimos tipos residenciais receberam o nome de EMBRIÃO, constituídos de saleta, quarto e banheiro. Só. Nessas residências os casais só se relacionam sexualmente depois da última novela, quando a filharada consegue dormir. Se um menino ou menina acorda arregala os olhos na presença do espetáculo dos pais pelados.

Esses conjuntos habitacionais são feios, casas emendadas uma nas outras. Alguns felizardos ganham fortuna na venda de terrenos para que nestes se levantem esses prediozitos que ofendem a dignidade de todos os enteados de Deus, filhos da injustiça dos homens maus, os banqueiros, e dos políticos de boa fé, que apenas agravam problemas comunitários.


A. Tito Filho, 11/02/1992, Jornal O Dia

quinta-feira, 29 de março de 2012

BACANAL

Corria 1964. Era março. Principiozinho do mês, um ou dois no calendário, parti de Teresina, por terra, no rumo do Rio de Janeiro. Viagem de bom recreio. Da viagem participava José Fernandes do Rego, meu primo, brilhante jornalista, e uns três amigos dele. Primeiro Fortaleza, onde se abasteceu o carro do necessário, desde a gasolina a bebedoria e comedoria. A dormida dava-se debaixo das árvores frondosas, com riacho por perto. Redes boas de descanso. Percurso longo, por estradas ainda sem asfalto. Em Campina Grande, café e uns beijuzinhos de côco ralado por cima. Cuzcuz e muita manteiga sertaneja. Depois, João Pessoa e Recife, no primeiro governo Miguel Arrais. Prosseguiu-se até Penedo, nas Alagoas, lugar de muita gente doente, boa feira de artesanatos, restaurantes de panelada e mocotó de vaca. Travessia do São Francisco, em pontão. Aracaju em seguida, bonitinha, dengosa, noitada alegre na praça grandona. Perto o palácio do governador da época, depois deposto, Seixas Dória. Agora Salvador, de ruas velhas, ladeirentas, comida apimentada que dava para soprar os peitos. Daí para frente, pela asfaltada Rio-Bahia, chegou-se à segunda capital brasileira, a cidade dita maravilhosa, que eu já conhecia como a palma da minha mão.

Hospedei-me com o primo José Rego, no seu apartamento da rua das Laranjeiras, visitado por gente famosa do tipo de Oscar Niemeyer, Raul Riff, por alguns comunistas de prestígio e figuras outras do governo comunistas de prestígio e figuras outras do governo João Goulart. Estive no comício do dia 13 de março, misturado com o poviléu entusiasmado e faminto. O presidente, ao lado da esposa, incentivava os aplausos com promessas de melhorar a vida do pobre. Pelas onze da noite, cansado, retornei à minha hospedagem.

Dia seguinte, José Rego me fazia convite para uma festa de aniversário no apartamento de amiguinha sua, no bairro do Flamengo. Cada convidado devia comparecer com o presente de comida ou bebida. A festa teria inicio às 11 da manhã.

De mim, não conhecia praticamente pessoa alguma. Muitos rapazes e moças, sentados, em palestrações alegres e por vezes gargalhantes. Consumia-se boa quantidade de álcool. Pastel em quantidade. Pelas duas da tarde, vi chegar uma garota do Piauí, filha adotiva de falecido magistrado, minha antiga aluna no velho Liceu.

Iniciaram-se as danças pelas 15 horas. Os pares, homens e mulheres, bêbedos, dançavam como se estivessem numa cama de casal. Houve um grito de comando, alto, para que todos tirassem a parte de cima das vestes. Todos nus da cintura para cima. Seios saltavam. Orgia sexual em que garotas e coroas se entregavam despudoradamente. Cenas de invulgar erotismo. Pouco depois, todos pelados machos e fêmeas.

Num canto, em mesa discreta, fiquei ao lado de José Rêgo, dois rapazes e duas moças, conversando e espiando o gratuito espetáculo. Chamei minha ex-aluna, inteligente, baixinha, mas bonita. Veio até mim, puxou cadeira, sentou-se, começou a chorar. Gostava de cocaína. Julgava-se desgraçada, infeliz, prostituta, ordinária. Dei-lhe alguns conselhos que ela recusou, considerando-se perdida.

Era o começo das bacanais de luxúria, bacanais de depravamento, como as de Roma na antiguidade, promovidas pelos Neros e Calígulas, tipos integralmente degenerados.

Quatro anos mais tarde, em 1968, em Paris, a juventude decretava a rebelião total contra os restos de beleza de uma sociedade hipócrita mas que pelo menos viveu inesquecíveis momentos de alegria.


A. Tito Filho, 29-30/03/1992, Jornal O Dia

AINDA O IBIAPINA

Ainda Ibiapina já realizou no difícil trabalho da obra de ficção - embora eu descreia da obra de ficção e acredito em que os escritores, nos contos e nos romances, reproduzam fatos e episódios da vida, inclusive aqueles de que foram intérpretes. E quando o escritor não copia a vida real, produz a obra literária com adaptação de lendas e tradições populares. O "Fausto", de Goethe, promanou de um conto popular. O "Don Juan" tem origem folclórica. Rabelais inspirou-se na tenda de gigantes gauleses para a criação de "Gargantua". Gustavo Barroso observa muito bem que os temas dos povos são, em grande parte, o berço das literaturas.

Produzindo esforçadamente, numa terra em que vale sacrifício o trabalho da inteligência apurada, Fontes Ibiapina enriquece, dia por dia, o patrimônio intelectual do Piauí. Os seus livros de contos, os seus romances fixam tipos, costumes, linguajar deste pedaço regional brasileiro. Vai às fontes das manifestações da lama popular, recolhe a sabedoria das comunidades, a sua expressão espiritual, os seus sofrimentos - e faz o livro de fixação, como se estivesse em pintar quadro dos mais sérios e dos mais graves e vivos. Os homens de letras comunica-se por dois modos fundamentais: ou concebe a mensagem, reformando o pensamento existente, derribando preconceitos, sacudindo estruturas, ou faz da paisagem social e humana sua cópia integral, a própria mensagem artística. Assim Fontes Ibiapina: a sua mensagem se encontra na poderosa inteligência de observação para fixar o meio e o homem que nele habita.

Leio agora mais um livro de Ibiapina - "Congresso de Duendes" - reunião de estórias de gente e principalmente estórias de bichos. De bichos, na composição de fabulário, de que se extrai a indicação moralizadora, ou o substrato do conto, que se cifra, como queira um critico de valor, no vestígio sobre a figura humana do acontecido com a alimária em que ela se metamorfoseou. Há, na concepção de Ibiapina, verdadeiro conjunto de manifestações populares incorporadas, representativo das crendices mais fortes da coletividade piauiense.

Um grande folclorista adotou a tese de que os contos populares têm asas: eles voam através dos continentes, das raças e dos séculos. O folclore é um só. Escreveu Gustavo Barroso: "Poderia nunca, na minha vida infantil, tão descuidadosa e levada da breca, à beira do Pocinho, do Poço da Draga e nas praias do Peixe, do Meireles, do Arpoador - pensar que o brinquedo das pedras para ver quem teria mais filhos, no futuro, era objeto das cogitações folcloristas, e fora descrito por Minutius Félix e denominado pelos gregos de epostracismo?".

O folclore poderia dizer-se a história moral do homem, como insinua Câmara Cascudo. Melhor é identificá-lo como a história natural das coletividades, da sua alimentação, dos seus tabus, das suas orações, dos seus ritos, da sua vida diária, para o reconhecimento da cultura como conjunto de normas sociais de que participamos.

Daí porque o trabalho do escritor, quando procura a fonte folclórica com sustento do livro, há de compreender as manifestações populares no campo em que elas se manifestam, para anotar-lhes as variantes e oferecer a fisionomia da realidade cultural. Não se pode reproduzir o folclore na sua universidade, apenas. É necessário entendê-lo como a ciência do homem-comum. E o homem-comum é a preocupação de Ibiapina, para projetá-lo no quadro da vida urbana e da vida rural, - como, - como contadores de estórias de bichos, reproduzidas de gerações em gerações, como personagem de novelas de amor, de heroísmo, como personagem de facécias, de cenas de bravura para lavação da honra ofendida, sempre respeitoso com a mulher, - objeto das preocupações do macho numa terra de preconceitos, e mais: como personagem da violência de um mundo que o prepara para o ódio e para a vingança - o ódio e a vingança sugeridos e provocados pelo desequilíbrio dos processos da vida social.

Ibiapina utiliza-se dos bichos para ironizar os poderosos de desvirtudes políticas, e serve-se dos homens sem destino para que estes interpretem o drama das suas comunidades, nas quais os instintos não vivem, nem é possível que sobrevivam as outras estruturas da personalidade.

Quadro vivo, na eloqüência de cores e de ritmos - o pungente quadro do drama piauiense. E Ibiapina é o pintor da sociologia da comunidade a que ele próprio pertence, com o dever de fixá-la, como fixou, para que todos possam interpretá-la na nudez das suas grandes misérias.

O livro vale.


A. Tito Filho, 27/05/1992, Jornal O Dia

MONOTONIA

Basta que a autoridade proíba a exibição de programas ou quadros televisivos perniciosos, logo se enfurecem os falsos defensores da liberdade de comunicação, sob invocação de mandamento constitucional que veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Esquecem os pregoeiros da total exibição de aspectos nocivos das cousas e dos fatos, como as pornografias e as cenas de degeneração moral - esquecem que a constituição de 1988 determina que se observem, nos programas de televisão, as finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas e se respeitem os valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Já se escreveu que a TV no Brasil se tornou um processo de maus exemplos, deseducativo por excelência. A sua poderosa influência revolucionou hábitos familiares, sobretudo por através das novelas de conteúdo passional e emocional, em que filhos desrespeitam os pais e estes se entregam a cenas deprimentes no recesso do lar. Não se pode fugir à triste realidade de que os freios morais da sociedade brasileira estão quase desaparecidos graças à televisão. A própria linguagem, um dos mais sérios símbolos da pátria, se degrada nas descomposturas, no calão, na baixeza das expressões entre pessoas que bem deveriam respeitá-la como instrumento maior de transmissão do pensamento.

Há no Brasil, em todas as partes do território nacional, baixeza moral, política de espertezas, ausência de ética, fuga aos deveres mais caros - e quase a totalidade das mazelas que desencantam os brasileiros se deve à televisão.

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Analisem-se os programas que mais curiosidade despertam nas telas televisivas, além das novelas de dezenas de capítulos, de português desasseado, expressões chulas, cenas inconcebíveis de ridicularias.

Noite e dia, dia e noite, a mesma cousa levada a um público que se comporta passivamente ante o desrespeito à personalidade de crianças, adolescentes, moços, maduros e velhos. Sempre o mesmo cenário e os mesmos assuntos. Oferecimento de dinheiro fácil a uma platéia à cata das cédulas do apresentador milionário. Calouros humilhados, objeto de gargalhadas de tipos e tipas dos júris deseducados, depois que a vítima recebe um banho de pó ou cousa semelhante, por vezes prejudicial à saúde física também. Pobres criancinhas nos xôs desenxabidos que as tratam mal e lhes impõem atitudes de obediência a determinações arbitrárias. Chico Anísio, inteligência admirada, bem poderia criar programas para público inteligente, que busca humor verdadeiro, jamais a monotonia de uma escolinha cujas cenas são as mesmas, de tarde como de noite, numa debochativa crítica ao processo das aulas e aos estudantes e mestres deste Brasil cuja escola pública se encontra desacreditada, ao lado dos cursos particulares que exercem o papel de arrecadadores de altas quotas do universo de estudantes convocados por propaganda irreal e malsã.

A escolinha de Chico Anísio constitui severa censura ao ensino nacional e serve de péssimo exemplo aos jovens que vêem televisão, revelando só tipos de alunos que a freqüentam, o homossexual, os débeis mentais, os ridículos, os estropiados da língua, os imbecis, os embriagados, enfim uma fauna que caracteriza de modo às vezes absurdo, às vezes real, as aulas brasileiras.

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O governo Collor está no dever de consertar os programas da televisão brasileira. Nela, na TV, inexiste moral. Para angariar audiências, anulam-se os valores éticos. Rebaixa-se a sensibilidade do povo, com o ridículo em tudo, num deboche permanente aos problemas, dramas, derrotas e misérias dos brasileiros.

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Já no carnaval de 1922 se exibiram artistas nus como nasceram, inclusive um macho representante de Adão. Tudo de fora.


A. Tito Filho, 23/04/1992, Jornal O Dia

RETRATO

Se me lembro e quanto do velho processo de culpar os outros pelo que praticamos erradamente. Assim se dava na escola. As professorinhas de curso primário não conseguiam que os meninos aprendessem. Nem a palmatória das rabugentas mestras de antanho, feias, solteironas, que mantinham escolas particulares de ensinança do ABC e da tabuada, palmatória ameaçadora, só a muito custo conseguem meter na cachola da petizada o necessário à respectiva desasnação. A culpa, diziam eles, pertencia à família, que não educava os filhos para o estudo, mas incentivavam a deseducação e estimulavam a vadiação. Recebiam-se bolos a valer, para a aprendizagem da operação de dividir números inteiros.

O sujeito saia do primário e ingressava no ginásio, depois do exame de admissão rigoroso. Professores carrancudos, exigentes, não suportavam a burrice dos discípulos. E haja reprovações. Oito ou mais disciplinas se destinavam aos estudantes já taludos. Depois, o ensino superior com dificílimas provas no chamado vestibular.

Os professores do ensino ginasial culpavam o ensino primário pelas dificuldades em que se viam os estudantes. Péssima aprendizagem. Nas faculdades superiores, tropeços constantes, e logo os mestres atiravam a culpa no ensino antecedente. E se o ensino superior diplomava doutores ricos de burrice, a culpa tinha como responsável o curso de humanidades, nos velhos tempos chamados ginasial ou secundário.

Quando se buscava explicação na família, esta se defendia, e bem, culpando o governo, sempre de maus exemplos, e a sociedade dos homens, cujos modos de vida mereciam veementes censuras. Só aprendia o sujeito que quisesse.

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A promessa eleitoral de Collor, em que acreditaram 35 milhões de brasileiros, apoiou-se na morte da inflação. Apregoava o candidato que vinha um só tiro na arma poderosa, com o qual mataria, sem dó nem piedade, o bicho-papão da economia dos patrícios. A ministra Zélia, uma paixão, seqüestrou poupanças e aplicações dos dinheiros de pobres e ricos, para o objetivo de enterrar o regime inflacionário.

No dia da posse presidencial, a carne nessa tão maltratada Teresina custava duzentos cruzeiros o quilo. Carne de primeira, sem pelancas, sem osso. Hoje se compra o mesmo produto, carregado de sujeira, por quatro mil e quinhentos cruzeiros. Que os matemáticos calculem a percentagem do aumento.

O tiro saiu pela culatra. A inflação continua a sugar os raquíticos vencimentos de operários e dos funcionários públicos. Mas logo se encontrou o grande responsável: a exploração do comércio. A ministra, uma paixão, encontrou, como Sarney na época do cruzado a saída fácil do tabelamento. As prateleiras dos comerciantes esvaziaram-se, liberaram-se os preços, e o presidente fixou a responsabilidade dos empresários, e estes se explicaram com a alegação dos aumentos constantes do valor da matéria-prima. E assim por diante, distante e onerosos os processos de fabricar produtos. Alegou-se ainda os altos impostos oficiais e os escorchantes juros bancários.

Mas qual o grande aumentador de preços neste país? Simples, o próprio governo, nas taxas constantes de gasolina, energia, telefone, correio, com aumentos mensais. A verdade verdadeira está em que o Brasil representa a tragédia de um povo sem alimentação, sem saúde, sem escolas, sem transporte, sem que possa ao menos sobreviver, sustentado de salários vergonhosos.

Deus se apiede dos milhões miseráveis do Brasil.


A. Tito Filho, 16/02/1992, Jornal O Dia

quarta-feira, 28 de março de 2012

AINDA O NATAL

Dezembro, 1991. O boletim informativo completou seis anos, como órgão oficial da Academia Piauiense de Letras. Circulou a primeira vez em janeiro de 1986, e sempre se manteve em circulação por todo o Brasil, mês a mês, divulgando aspectos da cultura piauiense e dos outros estados, informando a respeito das atividades acadêmicas. São preciosas, como fonte de consulta, as suas edições. Notáveis escritores nacionais testemunharam o valor do nosso trabalho e exaltaram a nossa conduta. Respeitamos as autoridades constituídas, mas não abdicamos da crítica séria e severa sobre a população brasileira, noventa por cento da qual sem acesso aos bens primários da vida, em estado de miséria absoluta uns milhões de patrícios infelizes. Escreveu recentemente artigo de maior importância Dom Eugênio Sales, cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro, intitulado O SENTIDO DO NATAL: "Hoje estamos submersos em um lamaçal, cujos responsáveis são de difícil identificação. Parcelas se diluem no tempo e em diversas camadas sociais. O fato concreto é que se torna irrespirável o ar que nos envolve, fruto de uma profunda degradação moral de alguns elementos da elite dirigente, cuja consciência descamba para a irresponsabilidade. Trata-se de uma minoria que resiste aos esforços moralizadores".

*   *   *

Com irrecusável autoridade Dom Eugênio revela o tristissimo retrato do Brasil do nosso tempo e o faz em nome da Igreja do Cristo. Pensamos que as instituições culturais têm o dever de zelar os valores morais da pátria e condenar o festival de males que uma pequena porção de homens milionários espalha pela sociedade na ostentação do luxo afrontoso e na criminosa exploração dos humildes, ajudados por autoridades oficiais que os acobertam e lhes concedem propinas formidáveis, na divisão dos lucros dos negócios rendosos.

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As academias de letras não devem ocupar-se apenas de meras conversações de caratér literário, a portas fechadas, em que mais freqüentes são elogios recíprocos. As academias antes de tudo, têm obrigações educacionais e culturais para com a coletividade, condenando a amoralidade dos dirigentes governamentais e as futilidades das elites empanturradas de dinheiros de origens obscuras. Ninguém se calará diante de escândalos sem conta e frente ao desalento geral de uma pobreza abandonada, sem alimentação, moradia, saúde, escola e à qual resta a "confiança em Deus, que assumiu nossa humanidade e nasceu no estábulo de Belém".

Dom Eugênio sustentou que a palavra cristã esbarra no mau uso da liberdade que esteriliza boa parte da fecunda ação da graça que o Presépio nos oferece.

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Não vivemos a mensagem do Presépio nem a aplicamos à vida coletiva. Sobre o Natal se expressou ainda o cardeal-arcebispo do Rio de Janeiro: "Infelizmente, a santidade dessa efeméride tem sido fortemente atingida, em nossos dias, por uma série de deformações. O sentido fundamentalmente religioso - Nascimento do Salvador - cede lugar a diversas celebrações, mais provenientes do paganismo que do cristianismo. Assim, a razão dos presentes festejos se distancia do objetivo do Menino-Deus que veio ao mundo para nos remir. O que deveria ser um sinal de alegria interior se torna objeto de comercialização, no seu aspecto meramente pecuniário".

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Esperamos que os brasileiros tenham um 1992 menos angustioso, vencendo pessimismos e fazendo uso dos direitos da cidadania.


A. Tito Filho, 29/01/1992, Jornal O Dia

COMENTÁRIO

A 21 de abril, depois de muito sofrimento e irresponsabilidade de alguns médicos, morreu Tancredo Neves, presidente eleito da República. Ainda a 21 de abril decorreram mais de 30 anos da fundação de Brasília, cidade artificial criada por dois gênios, Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Os dois projetaram-na para 500 mil habitantes, mas hoje ultrapassa os dois milhões de habitantes, cercada de favelas miseráveis por todos os lados, o que demonstra que o governo brasileiro jamais adotou medidas sérias em benefício da tranqüilidade social.

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Fez também a 21 de abril 200 anos do sacrifício de Tiradentes, na força armada no Largo da Lampadosa, um brasileiro como poucos, de coragem e de vergonha, que assumiu integral responsabilidade pelo movimento dos conjurados mineiros, seus companheiros de ideal. Não denunciou ninguém.

Anos passados era uma de civismo nacional o dia do protomártir da independência. As escolas, as instituições culturais, os organismo de governo promoviam significativas solenidades, para lembrar a memória de Tiradentes. Hoje, só por exceção, raras entidades promovem gestos de homenagens a quem tanto compreendeu os anseios patrióticos nacionais, dominados pela tirania portuguesa.

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Neste 1992 houve a Semana Santa, dias em que a Igreja realiza as cerimônias da paixão e morte de Cristo. Tempo de meditação. De modo geral o recolhimento espiritual dos fiéis começa 4ª feira e se prolonga 5ª, 6ª feira da via crucis rumo ao Calvário, sábado da aleluia, domingo da ressurreição. Cinco dias em que os católicos cumpriram as obrigações religiosas nos tempos e depois se recolheriam à intimidade dos lares, para comunhão com a família.

Que se deu este ano? O feriado nacional de Tiradentes caiu na 3ª feira. A Semana Santa encerrou-se domingo, dia 19. Logo a malandragem brasileira, com apoio oficial, enforcou o dia 20. E as coisas que deveriam ser sérias foram mandadas às favas. A Semana Santa e Tiradentes emendaram-se, sete dias de ódio, num país em que não há necessidade de trabalho nem esforço.

Estude-se o Brasil dos últimos 40 anos. Um país sem leitura séria, muito bem exemplificado pela Escolinha do Professor Raimundo, de alunos idiotas, imbecilizados, pândegas. Enterrou-se o civismo. O jovem não tem horizontes e responde com a droga e a violência. Menino-de-rua tornou-se profissão rendosa e altamente confortável.

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Em abril de 1992, a Semana Santa e Tiradentes transformaram-se num feriadão de estradas entupidas de carros que buscavam o vício e a promiscuidade das praias de sexo à mostra. Retrato de um Brasil doente, rico de preguiça e de menosprezo à dignidade nacional.


A. Tito Filho, 12/05/1992, Jornal O Dia

COMADRE PULU

Este ano de 88 passei a Semana Santa em casa, na leitura leve de revistas e de boas piadas do barão de Itararé, que eu conheci no Rio de Janeiro, famoso e querido. Também vi na televisão e meditei.

Na quarta-feira, boca da noite, minha comadre Pulu, batizada Pulquéria, ainda apetecível, pesar dos seis molecotes que já botou no mundo, me apareceu para requerer de meus magros bolsos o respectivo jejum. Dei-lhe um pedaço de bacalhau do lado do rabo, sardinha, macarrão, feijão, doce, uns trocados para os temperos e o transporte nos luxuosos ônibus da cidade. Perguntei pelo Bitonho, marido dela. O caboclo obteve licença na penitenciária para repouso religioso em casa.

Minha boa comadre nunca pôde passar a Semana Santa na praia, comendo peixe e bebendo uísque, os casais alegres, mas sem a lembrança de Deus, comem e bebem que adoecem, buscam os especialistas para cura dos andaços, que eles chamam disenteria.

O mundo está assim mesmo - disse eu à mãe do meu afilhado Toinho, já um pouco taludo, o mais velho dos dois filhos, que sonha com um emprego público, sem concurso e sem trabalho - o mundo está dividido entre os que deglutem bacalhoadas no repuxo do uísque e os que comem piabinhas fritas do rio Parnaíba, empurradas com boa cana.

Os programas de televisão estavam normais ainda na sexta-feira, morte de Cristo, que veio ao mundo para salvar as mulheres e os homens. Deus na Bíblia teve a desobediência da esperta Eva comendo a maça de que ela provou e gostou e deu-a, safada, a Adão. Aí Deus mandou Jesus habitar na terra - e Judas praticou a canalhice. Mulher e homem são, como se vê, farinha do mesmo saco, aquela engana Deus, este traiu Jesus.

Meditei em tudo. Na quaresma dos bons tempos, os sermões nas igrejas, o pano rôxo cobrindo santo e santas. As procissões silenciosas, as donas ricas vestidas de seda preta, as pobres com os mulambos tingidos de luto. Os anjinhos de asas as vestidoras de anjos, solteironas narigudas. Velhotas tabaquentes, cheirando a rapé. Havia o pessoal das irmandades religiosas, metidos na opa. Lembro-me do Zé Pindoba acompanhando o andor, cabeça baixa, como que arrependido das safadezas praticadas na sua quitanda de secos e molhados. A matraca de vez em quando convocava atenções, com as batidas fortes e espantadoras. Bons tempos.

Recordei estas cousas antigas, bonitas, e minha comadre Pulu me ajudou nas lembranças. Em casa, caminhava-se devagar, falava-se baixo ninguém ria. Não se deixava varrer casa em que pessoa alguma tomasse banho. Raros jejuavam de verdade. Comia-se muito, peixe, bacalhau, maxixe, jerimum, canjica e as inesquecíveis frigideiras. As beatas, sim, quase nada engoliam. Minha tia Iaiá, que Deus a tenha no seu reino, passava a sexta-feira santa de preto, ajoelhada horas seguidas, rezando terços, sem nada na barriga.

Comadre Pulu despediu-se, deu-me quebra-costelas demorado, pediu que a visitasse no casebre. Comunicou-me a notícia do almoção que ia preparar na quinta e na sexta-feira. Estava enjoada de jejuar o ano todo. Só escapava da fome nos dias maiores da Semana Santa, pelas boas graças do comadre caridoso. Ainda pretendia comprar, com os cobres que lhe dei, uma cachacinha para ajudar no apetite.

Gosto de minha comadre Pulu. conformado. Temente a Deus. Cozinha bem, embora, em casa, pouco acenda fogo, salvo o próprio. Vive de lavações e gomações de roupa de gente rica - aquela gente das mansões e das festanças à custa dos papagaios bancários e da inflação desnaturada e perversa.


A. Tito Filho, 16/04/1992, Jornal O Dia

CONTO E CRÔNICAS

O velho e bom dicionarista Morais definia conto como a narração fabulosa, a história imaginária. De crônica dizia que era a história escrita conforme a ordem dos tempos.

Livros didáticos de literatura citam o chamado gênero narrativo, que compreende história, romance, conto, novela. Esses mesmos livros didáticos costumam ensinar que a história abrange as monografias, anais, memórias, biografias, crônicas. O romance - dizem tais autores - é o desenvolvimento, em prosa, de um assunto. Conto é romance curto. Novela, a forma intermediária entre o conto e o romance, distinguindo-se por apresentar diálogos rápidos, narrações ligeiras.

Littré definiu como história, verdadeira ou imaginada, narração falada ou escrita. Para ele, os contos são acontecimentos da vida real ou as próprias tradições populares cheias de aventuras extraordinárias - aquelas aventuras que, em forma de contos, ingressaram na obra de Maupassant e Daudet.

Dicionários moderníssimos registram crônica como narração histórica, segundo a ordem dos tempos, anotações de episódios, relatos de acontecimentos principais de determinada época, e nos primeiros tempos da literatura portuguesa e estudioso encontra os cronicons ou cronicões ou crônicas medievais, simples repertórios de sucessos da época.

Crônica é, ainda, noticiário de jornais, anotação do quotidiano, comentário do que, no dia-a-dia da vida, aflige e alegra, escandaliza, enternece, entusiasma - e daqui, modernamente, decorrem as crônicas do crime, dos episódios mundanos, aos quais se empresta certo sabor de crítica.

A crônica, entretanto, assumiu posição de verdadeiro gênero literário, embora o fato de ser divulgada em jornal não implique em sua desvalia, como mostra Afrânio Coutinho.

Já disse que crônica se relacionava com o relato cronológico dos fatos sucedidos em qualquer lugar. Também revele que a crônica se identifica com o registro jornalístico, mas esses conteúdos, que explicam às vezes o emprego da palavra pelos antigos e pela voz corrente, não é o conteúdo da crônica como gênero literário. "Crônica, literalmente - diz Afrânio Coutinho - corresponde a pequenas produções em prosa, de natureza livre, em estilo coloquial, provocadas pela observação dos sucessos cotidianos ou semanais, refletidos através de um temperamento artístico".

Sendo a crônica, como queria Álvaro Moreyra, "ligada à vida cotidiana, tem que valer-se da língua falada, coloquial (de conversação), adquirindo inclusive certa expressão dramática no contato da realidade da vida diária".

Da crônica disse Eduardo Portela: a) que não a caracteriza a coerência mas ambigüidade; b) vive presa ao dilema do circunstante; e c) devem ser superadas as suas condições jornalísticas e a sua base urbana para que possa ela construir uma vida além da notícia.

O conto é narrativa dentro da ficção. Não se restringe à vida quotidiana, nem ao circunstante, mas desborda da idéia do tempo e do espaço, localizando os seus panoramas no chão desta terra ou no limitado território da pura imaginação - como ensinou Menotti del Picchia.

Escrita em estilo coloquial, provoca-se a crônica com a observação do quotidiano, enquanto a essência da ficção (conto) está na fuga do espírito às convenções do nosso universo pela descoberta de mundos novos (Menotti). No conto, há transporte para qualquer área da vida (passado ou futuro) e nele existem elementos básicos, da forma lecionada por Álvaro Lins: personagem, ambiência, ação.

Não é o caso de lembrar o aspecto técnico do conto, preso a regras tradicionais de começo, meio e fim, ao suspense, e à intriga. Modernamente, o conto sintetiza elementos fornecidos pelo ambiente e pela pesquisa psicológica - imagem do homem e da realidade, de significado e alcance universais.

Certo é que algumas vezes a lição tem a objetividade do quotidiano e realiza, assim, a crônica - mas também se verifica que a ambigüidade da crônica não raro a conduz ao conto.


A. Tito Filho, 21/02/1992, Jornal O Dia

terça-feira, 27 de março de 2012

O VAPOR

Naquele tempo, depois dos folguedos de primeiro de janeiro, o pessoal que vinha a Teresina costumava recitar nos momentos de despedida:

Eu vô me embarcá
Qui o vapô já apitô
Inté para o ano
Se nós vivo fô.

Era a saudade no coração dos visitantes, que retornavam pelo rio aos seus pagos queridos.

*   *   *

No governo do presidente Oliveira Junqueira constitui-se a Companhia de Navegação do rio Parnaíba, em 1858. Antes da promissora circunstância, já os poderes públicos haviam encomendado, no Rio de Janeiro, aos estaleiros navais de Ponta d'areia, o primeiro vapor para o rio Parnaíba, lançado ao mar a 12 de agosto daquele ano. Sofreu reparos no percurso. Em abril de 1859 chegou ao Recife.

*   *   *

O bom do padre Joaquim Chaves conta a história: "Foi assim que no dia 19 de abril, às três horas da tarde, soltando silvos profundos e prolongados, contando vagarosamente as águas do rio e deixando para trás uma esteira branca de espumas, o Uruçuí aproximou-se de Teresina e, majestoso, ancorou em frente à praça da Constituição" - que, esclarecemos, hoje tem o nome de Marechal Deodoro.

Padre Chaves passa a narrar o entusiasmo da cidade: "Os sinos do Amparo batiam a rebate, foguetes estouravam por todos os lados e uma imensa mole humana corria pressurosa para o rio, descendo por todas as ruas. Até os aleijados e doentes, carregados em redes por negros escravos, demandavam o rio, apressados, para verem de perto aquilo que mais lhes parecia um sonho. De fato, para muitos dos espectadores aquele gigante de ferro, daquele tamanho, boiando n'água, constituía um enigma insolúvel. Era preciso ver para crer".

Imensa a alegria generalizada. O vapor mudaria muita cousa nos costumes do Piauí e de Teresina.

Comandou o Uruçuí o 1º tenente da Marinha - Álvaro de Carvalho, que teve homenagem de jantar oferecido pelo presidente do Piauí, Antônio Correia do Couto. Houve ainda festa dançante.

As autoridades e convidados realizaram passeio em frente de Teresina, subindo e descendo o rio.

A 24 de janeiro iniciou a primeira viagem no rumo de Parnaíba. Fez viagens freqüentes durante nove anos. Naufragou em 1867, no lugar Coroa da Aurora, abaixo da povoação de Nazaré. Partiu-se em três pedaços.

*   *   *

Viajei nesses navios de vapor, tão agradáveis, duas vezes, pelo rio São Francisco. E a 18 de janeiro de 1947, comprei passagem num gaiola, em Floriano, chegando a Teresina no dia seguinte, manhãzinha, no momento em que o povo começava a votar para a escolha do governador do Piauí. Beleza de viagem.

Os tempos passavam e os gaiolas foram desaparecendo do riozão famoso e da paisagem de Teresina - até que se sumiram, deixando um rol de saudades.


A. Tito Filho, 15/03/1992, Jornal O Dia


A TELEVISÃO

Estudiosos em geral depõem que a televisão se tornou um processo dos mais ativos para que se inquiete o homem, sobretudo o futuro do homem, a criança, quando deveria ser importantíssimo meio de educar as coletividades para a vida. Observe-se que as novelas, de platéias numerosas e obcecadas, de conteúdo passional e emocional, dia por dia transformadas em coceira nacional - as novelas deformam personalidades, impõem hábitos, ensinam condutas violentas, deterioram a língua pátria. Pior do que as mazelas condenadas, a televisão brasileira vem praticando a perversidades do empobrecimento cultural do Brasil, e assim se uniformizam costumes regionais da pátria enorme.

Pouco a pouco desaparecem os agradáveis piqueniques de famílias e amigos, pobres e ricos, substituídos pelos americanizados coquetéis nos clubes, em que a elegância faz que se delicia de salgadinhos sem gosto, enfeitados de rodelinhas de azeitonas e salsichas, bem assim doses duplas de uísque gelado que a propaganda insinua como benfeitor das coronárias. Institui-se por força da publicidade a civilização dos enlatados. Sumiram-se as danças típicas, e em lugar delas vigoram os trejeitos, as macaquices, a barulheira e o histerismo do roquenrol, que o anticivismo importou dos norte-americanos, que aqui ganham milhões nos festivais de praça pública. A cozinha dos quitutes gostosos dos nossos avós se transformou na fábrica dos pratos sofisticados de denominação estrangeira nos restaurantes de toda parte. O cinema tem fundamento na violência, no sexo, no adultério, na vileza das ações humanas. A criança desconhece as encantadoras estórias da boca da noite, antes do sono tranqüilo. Hoje se educam nos xôs das xuxas. A língua nacional circula deformada no iê-iê-iê da nação inteira. Não há diferença de tratamento no caso dos pronomes TU e VOCÊ. Ambos se põem na mesma frase do individuo que conversa com o semelhante. A novela orienta a juventude, a maturidade, a velharia para o desrespeito recíproco. Pais e filhos se xingam e se insultam. Os bicheiros, os assaltantes, os traficantes de droga, os vendedores de crianças ganham admiração generalizada. Aos estudantes servem de exemplo as conquistas fáceis e a facilidade de ganhar dinheiro sem o trabalho correspondente. Dinheiro a rodo lucram os profissionais da esperteza. Projeta-se o criminoso e esquece-se a vítima. Não se mostra a atividade honesta, não se elogiam os que cumprem o dever. As bocas deseducadas proferem baixezas como expressões naturais, de pessoas inteligentes e que atuam conforme a moda vigorante. Não se vê na televisão, salvo raramente, a realidade brasileira, o quadro das suas populações sofridas, angustiadas, nenhuma delas exceto alguma vez por exceção, demonstra o mínimo interesse em que os brasileiros conheçam os progressos culturais das regiões do país. Desaparecem pouco a pouco as festas civicas e populares. Até o carnaval carioca, pleno de bom humor antigamente, festa de encantamento e beleza, perdeu as suas características de rua e de clubes, liquidadas pelos bilhões de cruzados gastos na estroinice das escolas de samba do peladismo pátrio e nas baixezas e perversões sexuais dos bailes de degenerados.

A televisão pratica verdadeiro crime espiritual, uniformizando o Brasil. Música, cantoria, cozinha, vestuário, usos, hábitos, costumes, estória, sexo, brinquedos infantis, teatro, cinema, linguajar, lendas, diversões - tudo se vai bitolando para que se eduque um pobre povo abandonado e que se orienta para comprar, para gastar dinheiro na imposição de quanta impostura o industrial fabrique - educação para a conquista de um falso conforto. Os canais de propaganda insinuam que o afeto se reduz ao presente para a mãe, para o namorado, para o pai, e haja dinheiro para enriquecimento sempre maior dos que fabricam e dos que vendem. Desapareceram as práticas regionais. Sufocou-se a arte verdadeira. Impera a subliteratura. A deformação é geral. O Brasil está totalmente submisso a uma civilização empacotado.


A. Tito Filho, 07/01/1992, Jornal O Dia

O PROBLEMA NEGRO

Los Angeles, cidade da Califórnia, nos Estados Unidos, ardeu em chamas. Mais uma vez o problema negro se manifestava em toda a sua crueza. Policiais brancos espancaram um motorista de táxi por ultrapassar os limites da velocidade permitida. Submetidos a júri, receberam absolvição. Tanto bastou. A revolta dos negros foi imediata. Violência a rodo. Mortos. Intervenção das Forças Armadas.

Quem leu "...E o vento levou", ou assistiu ao filme que Salznick copiou do livro, pode sentir o problema negro nos Estados Unidos - um problema com raízes num processo econômico que mais se salienta com o correr dos tempos e que não se resolve com leis civis, humanas, é verdade, mas distanciadas da realidade. O problema, ali, só se resolve com a abolição da miséria no sul e da miséria do negro. As populações negras nos Estados Unidos vivem nas piores condições de existência. Dá-lhes a lei o voto, o direito de freqüentar escolas e universidades, proíbe a lei a segregação em todas as suas modalidades e disfarces - mas a lei não lhes dá trabalho nem meios de auferir os benefícios da civilização dos brancos.

O presidente Johnson quis tocar na angustia do problema. Para ele, tudo deriva do desemprego, da doença, dos bairros pobres de miséria extrema: "Não é possível conter os insurretos pela força, mas é possível a extirpação das causas dos acontecimentos". Embora com tais verdades, Johnson não tinha razão. Esteve o falecido presidente em atendimentos para uso interno. Entendeu o caráter revolucionário do movimento negro, mas não foi capaz de perceber sua relação com a estrutura econômica.

Noutro século, o negro americano cantava infortúnios através da lânguida e morna música dos "spirituals". Neste século, passou ao protesto musical do nervosismo do jazz-band. Criou-se o Poder Negro, cujos cantores sabem que a opressão do negro é um fato econômico. Para a abolição se torna necessário mexer nas raízes econômicas do atraso social do negro. Observe-se que esse Poder Negro baniu indiscriminadamente os brancos do seu convívio. É que a luta de negros contra brancos e vice-versa tem fundamentos mais sérios, que não se situam na simples cor da pele. O negro, antes de tudo, vive numa até hoje inevitável exploração de operário não-qualificado e é muito difícil mudar o coração da massa humana, acostumada a ver o preto no seu lugar distante e subserviente.

Vivien Leigh interpretou a sulista bonita e graciosa da Geórgia vivendo a Scarlett O'Hara de "...E o vento levou", uma história da escravatura. A autora do livro, fidelíssima aos episódios históricos, não mostrou ódios raciais no romance que foi mais vendido do que a Bíblia, quando apareceu. Pelo contrário. Apresenta o negro em convivência afetiva o branco. Scarlett, a menina branca, estima, como aos seus, a mucama, que lhe dedica, por igual, amizade e afeição. Por que o ódio posterior? O ódio resultou da abolição e dos problemas econômicos daí advindos, e um destes está na mão-de-obra negra, que a sociedade capitalista inutiliza porque não pode legislar contra si mesma.

Vale lembrar Vivien Leigh, a menina maravilhosa de "...E o vento levou". Ela fez com Clark Gable, Olivia de Havillaand, Leslie Howard, Thomas Mitchel, o mais belo filme sobre a história dos negros americanos. Um filme imortal, feito pela generalidade de Salznick, em 1939, e que não perdeu a oportunidade, nem a perderá. O estudioso encontrará nele os fundamentos desse propalado preconceito racial, inexistente. Há, sim, um problema econômico.


A. Tito Filho, 17-18/05/1992, Jornal O Dia

O NU DAS MULHERES

Deus colocou o homem no jardim do passeio. Achou que não era bom que o homem estivesse só. Fez cair pesado sono sobre ele, tomou uma de suas costelas e transformou-a numa mulher. Entregou a varoa ao varão, ambos nus e vergonha não sentiam. Como se vê, o nu dessas criaturas vem de raízes bíblicas. Mas a serpente sagaz fez que Eva comesse o fruto proibido e ela deu-o também ao marido e ele também comeu. Abriram-se os olhos de ambos e, percebendo que estavam nus, cobriram-se de folhas de figueira. E por aí se contam os fatos.

Deus os fez nus e eles se envergonharam e esconderam os possuídos da forma mais simples que foi possível, depois da comilança da maça.

Os séculos se foram, na vertiginosa passagem dos anos. Cada dia homem e mulher mais se metiam debaixo de pesadas roupas. Chegaria ao mundo a civilização dos norte-americanos, que instituiu a produção em massa de produtos industriais e necessariamente deveriam criar nos dois sexos a filosofia da compra, ou processo civilizatório do consumismo. Criaram-se anúncios comerciais por através de um processo de condicionamento de reflexos. Revistas, jornais, cinema, cartazes, televisão, envoltório dos mais diversos objetos - de sabonetes, de rádio, de pente, de perfume, de pó-de-arroz, de brilhantina, de loção, de alpergata, - tudo começou a estampar mulher quase nuas, nádegas descobertas, por trás fio-dental, seios perfurantes ou balançando com o topless, sueteres colados para maior realce de pontos e lugares e saliências provocantes de sensualidade. Peças íntimas cada vez mais reduzidas expunham-se em vitrinas. Realçava-se a esbelteza do busto à custa de acolchoamentos. O método mais certo de atrair fregueses para a filosofia da compra esteve na exibição de corpos femininos desnudos, ao lado dos produtos anunciados. Em tudo a sexualização dos sentidos. Estabeleceram-se os concursos de misses, as misses de remelexos lascivos para a cupidez das platéias estrondeantes em palmas demoradas para exaltação da carne. Simplesmente, o nu da propaganda, sem aspecto artístico de espécie alguma. Não se tratava de um nu de Ticiano, mas do nu comercial, convocativo. Cada hora que passava a mulher perdia roupa até que chegou ao peladismo total e constante nas buates, nas praias, nas ruas - e a gente já cansou de ver tanta fêmea despida que o feitiço virou contra o feiticeiro. As revistas de nu total e sexo explicito estão sobrando e os editores já apelam para o sexo mulher versus animal. Uma estupidez este fim de século XX. Se o escrivão de Pedro Álvarez Cabral chegasse hoje ao Brasil, escreveria ao rei dando a notícia do descobrimento e das mulheres que os marujos encontraram: "Ali andavam entre três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olhamos, não se envergonharam".

Alguns idiotas pensam que o nu é progresso e mostra a beleza feminina - mas os idiotas jamais aplaudiriam que suas respeitáveis mães, esposas e filhas desfilassem nuinhas em pêlo pelas praias, pelas ruas, pelos becos de folia momesca ou frequentassem os motéis luxentos e luxuriantes de camas giratórias. Nu é bonito e bom na mãe do distinto amigo, na esposa do próximo, na filha de alheios pais.


A. Tito Filho, 11/03/1992, Jornal O Dia

segunda-feira, 26 de março de 2012

OS PRIMEIROS TEMPOS

Poucos anos depois de fundada, Teresina teve o seu primeiro teatro, o Santa Teresa, época em que começaram a aparecer os primeiros clubes recreativos, mais freqüentes com a inauguração do Teatro 4 de Setembro, em 1894. No ano anterior, destinado à encenação de peças teatrais na nova casa de espetáculo, houve o grêmio dramático de Raimundo Artur Vasconcelos, Fócion Caldas e outros. No inicio do século XX funcionava "Filhos das Arte", de Jônatas Batista, Mário Batista e mais alguns. Pedro Silva e Jônatas Batista criaram o Clube Recreio Teresinense, que se dividiu, surgindo a entidade "Os Amigos do Palco", orientada por Pedro Silva, Luís Correia, Fenelon Castelo Branco e Higino Cunha. Intelectuais, senhoras e senhoritas deram inicio à Hora Artística Familiar, nos anos 20, representada nas manhãs de domingo, no Teatro 4 de Setembro, com exibição de recreativos, danças, cantos, instrumentos musicais. Tornou-se o encantamento de numeroso público.

Após 1930, várias agremiações literárias e de estudos sociais tiveram surgimento para ativar a vida intelectual de Teresina, a exemplo do Teatro Experimental Escolar, o Clube Telúrico, o Teatro Acadêmico da Faculdade de Direito e Meridiano.

De prestigiada atuação antes dos anos 30, houve a Arcádia dos Novos e o Cenáculo Piauiense de Letras.

O Instituto Histórico e Geográfico Piauiense é de 1918, de brilhante atividade até a presidência de Josias Carneiro da Silva, nos primeiros tempos da década de 70, encontrando-se desativado nos dias correntes.

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Em 1931, jovens da sociedade teresinense criaram uma curiosa sociedade a quem deram o nome de A CATERVA. Foram eles Jacob de Sousa Martins, Clemente Honório Parentes Fortes, Anízio de Abreu Cavalcanti, Ismar Bento Gonçalves, Raimundo de Moura Rego, Gonçalo Lopes Lima, José do Patrocínio da Silveira Caldas, Afonso Barbosa Ferreira, Firmino Ferreira Paz e Wagner de Abreu Cavalcanti. Tratava-se de "uma congregação unida por afinidade intelectual" e os criadores desejavam sobrepor-se ao marasmo da inteligência do meio. Reinava a pobreza material que não permitia iniciativas sérias.

O seminário dominical "O Lábaro" constituía a imprensa da mocidade. Nas suas páginas revelaram-se talentos. Tinha feitio literário, mas cessou de existir por razões financeiras.

Surgiu, a 3 de maio de 1931, "A VOZ DO NORTE", com rápida conquista de leitores cultos. Tinha aspecto sadio e nas suas páginas Moura Rego e Wagner Cavalcanti publicavam elogiadas concepções de prosa e poesia.

Nesse tempo vivia Antônio Lemos, o SEMANA, respeitável figura do jornalismo piauiense, que editava o órgão político a LIBERDADE, em cuja sede ele suportava pacientemente as declamações de Wagner, as piadas de Clemente Fortes, as sátiras de Afonso Ferreira.

Os rapazes conjugavam-se, espiritualmente, e formaram um bloco especial, A CATERVA, nome escolhido por Anízio Cavalcanti e aprovado pelos colegas.

Havia em Teresina um lugar de afluência de estudantes, o Arquivo e a Biblioteca Pública do Estado, e aí se liam livros de literatura e de outros gêneros. Nesse ambiente surgiu a idéia da fundação de um jornal literário, que foi A VOZ DO NORTE, e de uma entidade de sócios restritos, integrada dos setores do órgão, denominada A CATERVA, em que preponderava a afinidade moral e intelectual dos seus membros.

Um interessante e curioso grêmio cultural, que não tinha prazo de reunião. Os jovens que o constituíram puderam sacudir a sonolência intelectual dos teresinenses nesses inesquecíveis anos da década de 30.

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Um só desses grêmios continua em funcionamento. Tiveram vida efêmera.


A. Tito Filho, 14/04/1992, Jornal O Dia