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segunda-feira, 2 de abril de 2012

ARTE

As comunidades humanas de vez em quando padecem provocações, que resultam de cousas diversas - crimes, intempéries da natureza, epidemias, atitudes passionais dos grandes ajuntamentos humanos, imprevidência das pessoas ou dos governos e outros. Teresina tem sofrido também, no curso de sua história, dias aflitivos e penosos.

Em 1875 houve o pânico, tempo em que a varíola matava por todos os recantos da cidade, que ocupava apenas a parte plana da margem do rio Parnaíba. Frei Serafim de Catânia tornou-se o piedoso confortador dos padecentes: "Jamais recuou da porta do pestoso, simples trapo de carnes podres, caindo aos pedaços, sem feições reconhecíveis, momento terrível de miséria humana. Esse quadro, muitas vezes renovado, não o abateu durante longas jornadas a qualquer hora do dia ou da noite. Ao ouvido dos desgraçados, sem desfalecimentos nem tardanças, trazia a paz da consolação suprema" - assim escreveu o ilustre Elias Martins. Dois anos depois da varíola, a seca de 77. Centenas de retirantes chegavam ao Piauí, vindos do Ceará. E para o Piauí não tardou a penúria, fome, a morte. Teresina abrigou multidão de exaustos e doentes.

As cheias formidáveis dos dois rios que banham a cidade, de tempos em tempos inundam habitações, sobretudo as choupanas da pobreza sofredora - e desabrigadas sem conta permanecem até que as águas baixem e seja possível reaver as chocas miseráveis ou o levantamento de novas.

O cerco da Coluna Prestes, entre 1925 e 1926, vinda pelo sul do Estado, fez que grande parte da população, espavorida, abandonasse a cidade e tomasse os caminhos do norte, por medo da fuzilaria ensurdecedora e perigosa.

Os acontecimentos iniciais em 1943 correspondem, porém, a cenas dantescas e tragédias gregas, tantas as violências contra pobres pessoas se provocaram, promovidas por agentes policiais. Era o governo do médico Leônidas Melo, que, interventor federal no Piauí, em virtude de certos atos contra direitos alheios, conquistou sérias inimizades políticas. Vigorava a ditadura e os jornais sofriam censura prévia. A chefia de Polícia estava sob as ordens do coronel Evilásio Gonçalves Vilanova. Foi o tempo dos terríveis incêndios de casebres de palha de Teresina. Comunicavam-se por bilhetes o dia e a hora em que as labaredas subiam aos céus na queima da casa escolhida - e os moradores a abandonavam, e no exato momento do aviso as línguas de fogo consumiam tudo, teto e paredes, e os trastes da vida diária.

Desespero e choro. Nada se salvava, tudo se transformava em cinza, os cacos da cozinha e os farrapos de pano da dormida e do coro.

Os elementos de oposição culpavam as autoridades, desejosas de acabar com as choupanas de palha da capital, feias e miseráveis, ou o governo atribuía o crime aos adversários para puni-los severamente na qualidade de incendiários. Pensava-se também na existência de indivíduos, piromaníacos para a satisfação da mórbida personalidade. Chegou-se a acusar da hediondez o próprio chefe de Polícia, por intermédio de policiais de confiança com a intenção ambiciosa de derribar o interventor federal e assumir o comando da administração. As rodas oficiais consideravam mandantes das queimações o médico José Cândido Ferraz, que despontava como o mais afoito elemento contra o governo ditatorial na política piauiense.

Alta noite homens humildes, presos pela polícia e acusados de autoria, nas clareiras da mata de Teresina rumo de Morrinhos, eram submetidos a torturas intensas e impiedosas. Contam que alguns morreram.

Do Rio de Janeiro veio delegado especial para as investigações - e apesar de trabalho exaustivo e bem orientado e das suspeitas levantadas, não se chegou a nenhuma conclusão definitiva.

Vitor Gonçalves Neto fixou tenebrosos aspectos dos incêndios que afligiram a pacata comunidade teresinense desses dias de luta e de lágrimas. O talento de escritores, como ele, sabe explorar essas tragédias e revelar-lhe os cenários e as vítimas da forma que as reproduzissem em toda a eloqüência da sua crueza. Vítor utilizou-se da verdadeira arte popular, e à sociedade de hoje, já distante dos trágicos dias passados, transmitiu a força dum sentimento coletivo para os deveres das grandes solidariedades nas dores que o homem tem padecido em todos os tempos da humanidade.


A. Tito Filho, 18/01/1992, Jornal O Dia

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